A apropriação das lutas sociais pela indústria cultural

Por Raphael Silva Fagundes.

A apropriação das lutas sociais por parte da indústria cultural hollywoodiana é uma estratégia do imperialismo cultural. Ela reproduz, através de uma manipulação, o processo cultural que permite a manutenção do seu mercado e de seu poder ideológico.

Vivemos sob um regime que esbanja, descaradamente, um imperialismo pós-moderno. Após as manifestações de maio de 1968, quando a classe média começou a exigir mais liberdade individual, o neoliberalismo atendeu a esse pedido para que, assim, pudesse se tornar mais violento economicamente e pôr fim ao Estado de bem-estar social. A burguesia posicionou-se a favor das inúmeras bandeiras levantadas pelos movimentos sociais e a principal manifestação disso é a representação nos filmes hollywoodianos.

Nos anos 1990, a esquerda abandonou suas lutas tradicionais, isto é, a organização do movimento operário, abraçando as diversas lutas identitárias. Com isso, deixou de lado uma série de questões, inclusive arrancou de seu discurso a palavra “imperialismo”. O maior símbolo intelectual dessa questão é o livro de Antonio Negri e Michael Hardt, Império. Atilio Boron é incisivo ao afirmar que a obra desses autores “soava como música celestial para as classes dominantes do império e seus falcões de Washington […] ao conceber o imperialismo como um reflexo direto do nacionalismo, concluem que com a inelutável desaparição do Estado-nação chega também a seu fim o ciclo imperialista”. Assim cunhou-se o eufemismo: globalização.

O sociólogo argentino apresenta uma série de novas técnicas usadas pelo imperialismo atual para espalhar a influência norte-americana pelo mundo. Uma delas é o “imperialismo cultural, que através do enorme desenvolvimento dos meios de comunicação de massas torna possível a imposição das ideias e dos valores da sociedade norte-americana de forma tal que nenhuma das experiências imperiais anteriores pôde sequer sonhar”. Em seguida destaca que três quartos das imagens audiovisuais que circulam pelo planeta são produzidas nos Estados Unidos.[1]

Os filmes da Disney, por exemplo, são maneiras de combater as tradições locais para encaixar a vida das pessoas no que chamamos de globalização. Tornam todos livres para consumir qualquer coisa, sem preconceito. Adaptam as manifestações culturais espalhadas pelo globo, que possuem a sua própria lógica local, à lógica do mercado.

Soma-se a isso as estratégias em relação aos filmes que representam o modelo de feminismo, de luta perante o racismo, de pessoas com necessidades especiais etc. Mulher-Maravilha foi muitas vezes associado ao empoderamento feminino, à mulher forte que luta para conseguir concretizar seus desejos, seus ideais. Um modelo que serve de paradigma para as lutas feministas em todo o mundo.

Essa forma de dominação imperialista busca calar a lógica local, as maneiras de lutas imanentes da realidade social do lugar. O indivíduo que entra em contato com esse tipo de filme acaba por esquecer as circunstâncias locais que geram o conflito, sendo convencido a se aliar a uma maneira específica, que por sinal é muito conivente aos interesses do capital. A cidadã da periferia de São Paulo acaba por achar que o machismo que sofre é o mesmo que de uma atriz de Hollywood, esquecendo os aspectos de sua classe, as agonias da sua realidade cotidiana, da história local, do meio ambiente que vive etc.

O feminismo apropriado pela classe média é muito útil. É uma forma de ser rebelde sem ser revolucionário. Como demonstrou Slavoj Zizek, a luta feminista busca a convivência pacífica com o seu oposto, já a luta de classes procura a aniquilação do seu oposto, embora, a primeira possa ser inserida na segunda. Mas não seria útil para a dominação burguesa. Por isso, o melhor a fazer é separar essas lutas.

O mesmo ocorre com filmes do tipo Pantera Negra. Não é uma maneira de negar a história dos verdadeiros Panteras Negras e determinar uma maneira legítima, “politicamente correta”, de enfrentar o racismo que ainda persiste na sociedade ocidental? No mesmo artigo, Zizek nos ajuda nessa questão: “seguindo a trilha do quadrinho original da Marvel, o filme – que jamais menciona diretamente os verdadeiros Panteras Negras – em um simples mas nem por isso menos magistral toque de manejo ideológico na prática se apropria do nome original de forma a fazer com que ele reverbere menos a histórica organização militante radical e mais o rei-super-herói de um poderoso reino africano fictício”.

A apropriação das lutas sociais por parte da indústria cultural hollywoodiana é uma estratégia do imperialismo cultural. Ela reproduz, através de uma manipulação, o processo cultural que permite a manutenção do seu mercado e de seu poder ideológico.[2] O objetivo é negar as contradições locais e fazer com que as pessoas, os trabalhadores reais, esqueçam seus problemas para pensar nos problemas do imperialismo. É o direito de consumir como o branco, como o homem ou como o heterossexual.

No início do século XIX, as potências capitalistas precisavam de mercado consumidor para a imensa carga de produtos gerados pela Revolução Industrial. Hoje o mercado quer a mesma coisa, manipulando os conflitos sociais para produzir consumidores em potencial. Vende um produto para o negro, outro para a mulher e um outro para o homossexual. Diz defender a diversidade, contudo, não vê a humanidade das pessoas que se diferem, mas o custo benefício.

Conclusão: uma reformulação

Uma forma de resistência é voltar os olhos para as contradições internas, sócio-históricas desenvolvidas na periferia, no bairro e nas mediações onde elas se dão. Cada luta tem sua especificidade local e, principalmente, classista. Precisamos partir do local para o global, jamais o inverso. O racismo sofrido por uma diarista que pega todos os dias o BRT na zona oeste do Rio de Janeiro não é o mesmo sofrido pela Viola Davis ou pela Thais de Araújo, embora haja racismo em todas essas situações. O mesmo serve para a homofobia, machismo etc.

A esquerda ainda tem a mania de aderir a manifestações de ícones da indústria cultural. Acredita que é uma forma de aumentar a adesão aos ideais esquerdistas. No entanto, o problema de tudo isso é o vilipêndio a um fato social: vivemos em uma sociedade de classes. Se as diferenças entre as classes sociais não forem ressaltadas (não só as econômicas, mas as culturais), toda manifestação social só fará progredir o capitalismo, solucionando problemas superficiais, ideológicos, mantendo as bases materiais – de onde parte as principais injustiças – intocadas, produzindo, inevitavelmente, novas relações draconianas.

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