Meu avô Euclides nasceu em 1905 na recém-inventada capital de Minas Gerais, mas não é de meu avô que quero falar. Quero falar da infância privilegiada que tive – meu avô Euclides tinha uma amiga, uma moça trans. Diziam que o ambiente da casa de meu avô era promíscuo, porque “Priquita” sempre estava lá no meio da família, comendo, conversando, dando uma mão nos afazeres da casa e participando dos saraus, das rodas de samba.
Eu, bem pequena, nunca soube seu nome. Ela gostava de ser chamada assim, de Priquita, corruptela de periquita.
Eu, bem pequena admirava a alegria e a coragem dela que se virava naquela vila operária, numa cidade pequena e provinciana pra ganhar um qualquer do jeito que podia: lavando, costurando, cozinhando, olhando a criançada da vizinhança, levantando muro, fazendo cimentado, acompanhando idoso ao INPS.
Era risonha, alta e dizia que seu maior sonho era ter seios. Não conseguia imaginar como conseguiria isso, mas ela adiantava o sonho e usava daqueles sutiãs de bojo, comuns na época, duros feito um porta-coador.
Tenho saudades de meu avô e de sua abertura à vida. Tenho saudades desse tempo em que eu não sabia dos perigos e da singeleza de um sonho.
Tenho saudade dessa moça que nem tenho como procurar.
Meu avô morreu em 1978.
Queria ter dado seios pra ela e dizer ao meu avô que ele foi gigante.
Tive uma infância privilegiada.
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[avatar user=”Luciane Recieri” size=”thumbnail” align=”left” /]Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP