CPMI do aborto, estatuto da família, revogação da contracepção de emergência para vítimas de violência sexual. O Congresso Nacional mais conservador desde o golpe civil-militar de 1964 tomará posse no próximo domingo (01/02) representando uma ameaça real aos direitos das mulheres.
“A cada dia que passa, temos uma oposição mais nítida, com mais musculatura, da bancada fundamentalista”, afirma Érika Kokay, deputada federal reeleita (PT/DF) e vice-coordenadora da Bancada Feminina da Câmara na 54ª Legislatura (2011-2014).
Com um mandato voltado à defesa dos direitos humanos, Kokay identifica “não apenas o crescimento da bancada obscurantista, fundamentalista religiosa, mas o crescimento de uma bancada empresarial, latifundiária, e de uma bancada que busca ou que expressa de uma forma muito desavergonhada a necessidade da volta da ditadura militar, do aumento do Estado repressor, do Estado penal”. A aliança entre esses setores são bastante concretas, avalia a deputada, e ocorre porque “têm um diálogo muito intenso com a lógica fascista, que é desumanizar o outro, alguns seres humanos vão ter direitos e outros não”.
Entre os direitos que são negados à parte da população está a interrupção voluntária da gravidez, um dos principais alvo/as conservadores/as. Na última Legislatura, o tema voltou à tona com os casos de Jandira Magdalena dos Santos e Elizângela Barbosa, mortas durante a realização de abortos ilegais, e da votação do PL 60/99, de atendimento às vítimas de violência sexual, agora lei 12845/2013.
Aprovado no Colégio de Líderes sem dificuldade, o PL 60/99, de autoria de Iara Bernardi (PT/SP) virou motivo de disputa entre a Bancada Evangélica e os movimentos feministas e de mulheres quando chegou à mesa da presidenta Dilma Rousseff para sanção. Isso porque o texto previa a “profilaxia da gravidez”, ou seja, o fornecimento da pílula do dia seguinte no Sistema Único de Saúde (SUS) àquelas que tivessem sido estupradas.
Embora seja uma contracepção de emergência, os/as religiosos/as identificaram erroneamente a prática como aborto – que em caso de violência sexual também é autorizado pelo Código Penal desde 1940, vale lembrar – e pressionaram o governo a não sancioná-lo, ameaçando inclusive não apoiarem Dilma na reeleição. Não venceram, mas apresentaram o projeto de Lei 6033/2013, que revoga a lei 12845/2013. Esse PL, em tramitação, é de autoria do deputado federal Eduardo Cunha (PMDB/RJ), evangélico, integrante da Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida e que concorre à presidência da Câmara dos Deputados contra Arlindo Chinaglia (PT/SP), Júlio Delgado (PSB/MG) e Chico Alencar (PSOL/RJ) – com sérias chances de ganhar.
“Não dá para fechar os olhos, as mulheres estão morrendo. Não dá para ficar esperando. É uma pauta para a gente enfrentar. E a Polícia Federal estourando clínicas de aborto que estão no mesmo lugar no Paraná há 20 anos, que todo mundo sabe. Mas aí faz uma, dá muita manchete de jornal, aí vão fazer mais cinco”, avalia a deputada federal Rosane Ferreira (PV/PR), também integrante da coordenação da Bancada Feminina.
De fato, após o fechamento de clínicas no Rio de Janeiro, onde Jandira e Elizângela morreram, as mulheres passaram a viajar para outros estados onde as clínicas clandestinas não estão sob tanta vigilância. Ou seja, não deixaram de interromper gestações não desejadas apenas porque a PF resolveu agir aqui e ali.
Porém, no lugar de discutir as condições precárias em que, segundo estimativas do SUS, cerca de 800 mil mulheres realizam anualmente abortos no Brasil, há pressões para que o Congresso instale uma CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) para fechar ainda mais o cerco às mulheres. O aborto enquanto questão de saúde pública, diz Jô Moraes (PCdoB/MG), infelizmente “é um tema que não se toca”.
O Estatuto da Família é outra pauta de interesse direto das mulheres que continuará sendo debatida no próximo período. O projeto de lei 6583/2003 é de autoria do deputado federal Anderson Ferreira (PR/PE) e prevê, em seu artigo segundo, que uma família é composta por “um homem e uma mulher”. “Esses setores fundamentalistas acham que uma família patriarcal é uma família que não é violenta. Não percebem a violência de uma família patriarcal. Eles são promotores de uma violência institucional e uma violência que arranca das mulheres os direitos”, lamenta Érika Kokay.
Essas questões, claro, não são tratadas da mesma maneira pelas diferentes parlamentares. Um exemplo disso é que Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida foi coordenada, até 2014, por uma mulher, a deputada federal Fátima Pelaes (PMDB/AP). Assim, e apesar de ter aumentado em impressionante 1% o número de mulheres eleitas para a Câmara Federal, isso não significa que elas farão um enfrentamento conjunto a ameaças aos direitos das mulheres. “É tão difícil qualquer conquista da mulher que você tem que investir muito em construção política e respeitar as diferenças”, comenta Jô Moraes, coordenadora da Bancada Feminina, ao referir-se à CPMI da Violência Contra a Mulher, um das ações recentes bem sucedidas da Bancada Feminina.
A divisão também ultrapassa as barreiras de situação e oposição. Muitos/as deputados/as conservadores fizeram ou fazem parte da base do governista – como bem demonstrou a eleição do pastor Marco Feliciano (PSC/SP) para presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara em 2013.
Em meio aos escândalos da Petrobras e ao rescaldo de uma eleição onde a polarização foi muito forte, é de se esperar que, novamente, os direitos das mulheres, em especial os reprodutivos, sigam em segundo plano em prol da já tão capenga governabilidade, em nome da qual tudo se justifica, por mais absurdo que seja. Apesar de haver algumas conquistas simbólicas importantes, como a tipificação do feminicídio, elas se inserem muito mais em uma política de “contenção de danos” do que em transformações estruturais na vida das mulheres. A PEC das Domésticas, por exemplo, que pode representar uma mudança mais contundente, até agora não foi regulamentada. Aguardemos dias difíceis pela frente.
Fonte: Carta Capital
Foto: Marcela Cornelli