“Os golpistas brasileiros precisaram pagar um tributo a Washington, partícipe, avalista e beneficiário de 1964.” É assim que a CNV (Comissão Nacional da Verdade) descreve a interferência dos Estados Unidos no cenário político brasileiro que culminou no golpe contra João Goulart. Ao longo das mais de 4 mil páginas do relatório final, entregue nesta quarta-feira (10/12) à presidente Dilma Rousseff, a comissão classifica como “efetiva” a participação da potência estrangeira no movimento de conspiração contra Jango.
Parte do papel dos EUA no golpe já era sabido, como a mobilização logística da Operação Brother Sam, que deslocaria armamentos e suprimentos para abastecer os conspiradores, em um eventual conflito civil. No entanto, a CNV faz relevante comentário sobre a importância de Washington na ruptura da ordem constitucional ao dizer que a massiva presença militar norte-americana na costa brasileira — que, inclusive, estava preparada para fazer desembarcar tropas em solo nacional — pesou decisivamente na opção de João Goulart em não resistir ao golpe, evitando uma guerra civil.
Abaixo, selecionamos alguns trechos do relatório da CNV que destacam a participação e o engajamento dos EUA no regime de exceção brasileiro:
A ‘senha’ de Minas Gerais para os EUA
Para garantir o sucesso do golpe, o governo de Minas Gerais — estado de onde foi deflagrado o movimento para depor Jango pelas tropas do general Olympio Mourão Filho — estava acordado com agentes do governo norte-americano. Segundo escreve a CNV, o governador Magalhães Pinto declararia Minas Gerais em “estado de beligerância”. Esta, para a comissão, “seria a senha para que os Estados Unidos interviessem no Brasil”; a partir daí, Washington colocaria em curso “o plano de contingência elaborado pela inteligência estadunidense no final de 1963”. Uma parte desse projeto recebeu o nome de Operação Brother Sam, cuja extensão de atuação foi revelada em 1970.
Lista de materiais
O coronel de brigada José Pinheiro de Ulhôa Cintra, em contato direto com o adido militar dos EUA, coronel Vernon Walters, definiu equipamentos e recursos que seriam deslocados pelos Estados Unidos em direção aos portos de Santos e Recife. O material incluía:
• navios-tanques da Marinha dos EUA levando gasolina e óleo;
• 1 porta-aviões;
• 4 destroieres;
• 2 escoltas de destroieres e navios-tanques de força-tarefa;
• 110 toneladas de munição;
• armas leves e outros equipamentos, incluindo gás lacrimogêneo para a contenção e o controle de multidões;
• 10 aviões cargueiros;
• 6 aviões-tanques; e,
• 6 caças
Intervenção militar direta dos EUA
O movimento dos conspiradores brasileiros para depor o presidente João Goulart englobou várias esferas de atuação. Em uma delas, de caráter logístico, o movimento golpista preparava-se para um conflito armado contra as forças leais a Jango — na prática, uma guerra civil. Em função desse cenário, os conspiradores pensaram cuidadosamente em fortalecer as células armadas e, para isso, contaram com apoio fundamental dos Estados Unidos, que incluía a previsão de intervenção militar norte-americana direta no Brasil. Nas palavras da CNV, em seu relatório final: “Além do mencionado operativo, o plano também previa o desembarque de tropas estadunidenses no solo brasileiro”.
Presença dos EUA influenciou postura de Jango
Como se sabe, a intervenção militar dos EUA nunca chegou a ser necessária, pois o presidente deposto, João Goulart, para evitar a eclosão de uma guerra civil no Brasil, optou por não partir para o enfrentamento com os golpistas. Entretanto, o relatório da CNV estabelece que a presença militar norte-americana na costa brasileira em 31 de março de 1964 pesou consideravelmente na decisão de Jango de não reagir — e por isso a participação dos EUA no golpe foi “efetiva”.
A participação de uma potência estrangeira na crise do governo Goulart, a despeito de não haver acontecido de forma espetacular, com uma intervenção militar, ocorreu efetivamente, pois a presença militar de uma grande potência na costa brasileira fez parte do cálculo político do presidente deposto, em sua decisão de não reagir. (Relatório CNV, vol.2, texto 8, ‘Civis que colaboraram com a ditadura’, pág.305)
EUA no pré-golpe: financiamento de campanhas políticas
No período que antecedeu o golpe de 1964, o relatório da CNV também detalha interferências — sobretudo econômicas — dos Estados Unidos na política brasileira. Dinheiro norte-americano irrigou centenas de campanhas eleitorais no pleito legislativo de outubro de 1962, o último democrático antes do golpe dois anos mais tarde. E a via de acesso desse financiamento externo foi o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), órgão definido como “uma organização da agência de inteligência dos EUA no Brasil”, nas palavras de Philip Agee, um ex-agente da CIA, citado pela CNV. Algumas das ações do complexo Ipês/Ibad:
• para financiar candidatos contrários a João Goulart, o Ibad repassou recursos do governo dos EUA que podem chegar à soma de US$ 20 milhões;
• foram financiados 250 candidatos a deputado federal;
• após o pleito, um terço da Câmara dos Deputados era formada por parlamentares eleitos com tais recursos; e,
• esquema investiu na campanha de 600 deputados estaduais, 8 governos estaduais e vários senadores, prefeitos e vereadores.
Nas palavras do relatório final da CNV, a atuação dos EUA nas eleições legislativas de 1962:
O complexo Ipês/Ibad promoveu uma ação absolutamente ilegal que mais uma vez denota o grau de ingerência de uma potência estrangeira nos negócios internos de uma nação soberana. (Relatório CNV, vol.2, texto 8, ‘Civis que colaboraram com a ditadura’, pág. 309)
CIA apoiou marchas religiosas
O apoio dos EUA foi importante para dar força às manifestações civis que antecederam o golpe de 1964, como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
Em tal mobilização, seria decisivo o apoio da CIA no financiamento às ações do padre estadunidense Patrick Peyton, o qual seria deslocado do Chile para o Brasil já em fins de 1961, estimulando uma campanha de orações ‘contra o comunismo’.
Segundo escreve a CNV, o impacto das marchas religiosas na opinião pública logo antes do golpe foi decisivo para fortalecer a aceitação da deposição do presidente. Assim, serviram para produzir uma narrativa — que não era compartilhada pela totalidade da sociedade brasileira — de que o povo “clamou pela intervenção militar”.
Foto: Agência Efe
Fonte: Opera Mundi