José Álvaro de Lima Cardoso.*
Foi aprovado recentemente no Congresso Nacional o texto-base do projeto que reduz a meta de superávit primário do país, que é a economia para pagar os juros da dívida pública. O objetivo do governo com o projeto foi liberar recursos para obras de infraestrutura e estimular o crescimento econômico, que vem patinando no Brasil. A oposição ao Governo Federal fez muito estardalhaço, tentando impedir a aprovação do texto, alegando que o governo gastou de forma desmedida e infringiu as regras previstas na lei de responsabilidade fiscal. A reação era esperada até certo ponto, dada a atual conjuntura política do país, na qual posições estão muito polarizadas, como em poucas ocasiões. Sobre o projeto, em si, no entanto, cabem algumas observações.
É curioso que boa parte dos analistas mencionem o superávit primário como política intocável, correta por definição, e cujos fundamentos não possam ser questionados. O fato concreto é que poucos países no mundo têm superávit primário no nível do Brasil e, além do mais, ao contrário do que se divulga normalmente, o superávit primário brasileiro se encontra entre os mais elevados. Na comparação com os principais países da América Latina e aos que formam o G20, o superávit obtido pelo Brasil está entre os cinco mais elevados, desde 2010, conforme levantamento feito pelo economista Daniel Keller de Almeida, sócio da Creta/Nobel Planejamento, divulgado na Carta Capital. Segundo o citado economista, o superávit primário brasileiro é o quinto entre a amostra em 2010; em 2011, só é inferior ao da Arábia Saudita; em 2012 é o quinto maior e em 2013, foi o terceiro mais elevado. O Brasil é o único país, além da Arábia Saudita, que mantém, durante toda a série, um superávit primário positivo e superior a 1% do PIB.
O superávit primário é política que interessa basicamente ao setor financeiro e aos credores em geral da dívida pública brasileira. Em função da influência que os rentistas têm na sociedade, este debate desperta tanto o interesse dos segmentos especializados e dos chamados formadores de opinião. Anualmente o Brasil realiza enormes transferências de recursos para os credores da dívida e o superávit primário é uma das garantias disso ocorrer. Atualmente, a chamada Dívida Líquida do Setor Público, equivalente a pouco mais de um terço do PIB, transfere na forma de juros o equivalente a 5,5% do PIB para os credores da dívida, algo próximo a 250 bilhões, todo ano. É uma verdadeira fortuna, que equivale a 10 vezes o orçamento do Programa Bolsa Família para este ano, (Programa que retira 55 milhões de brasileiros da fome), obtidos sem produzir um parafuso e sem colocar o pé na fábrica. Mesmo Ainda assim, alguns acham que não se pode questionar e debater a política de realização de superávit primário no Brasil.
O Brasil vem crescendo pouco, dentre outras razões, porque somos “campeões mundiais” em taxa de juros, quando uma boa parte dos países do mundo vêm praticando taxa de juros reais negativas ou muito baixas. A combinação de superávit primário elevado com as maiores taxas de juros do planeta é um desastre do ponto de vista do crescimento. Neste momento de baixo crescimento da economia mundial, a política de superávit primário é uma espécie de rendição ao capital financeiro. Não por acaso, existe hoje um grande questionamento sobre os parâmetros econômicos dominantes internacionalmente. Essa discussão ocorre dentro do próprio FMI, do Banco de Compensações Internacionais, e de centros acadêmicos de primeira linha no mundo.
Critica-se bastante a redução do superávit nos últimos anos e a redução da meta para este ano, sem levar-se em conta que, em boa parte, o fenômeno decorreu das desonerações tributárias (inclusive da Previdência Social), estratégia para enfrentar o violento processo de desaceleração da economia mundial, que, no caso da Europa, vai pelo sexto ano seguido. Ademais, a diminuição do superávit primário, é efeito direto do baixo crescimento da economia brasileira sobre a arrecadação de impostos. Numa conjuntura em que o investimento privado caiu e o país apresenta déficits na balança comercial, nada mais adequado que aumentar o investimento público. O aumento deste ao mesmo tempo em que atua sobre os gargalos estruturais da infraestrutura brasileira, é instrumento importante de alavancagem do crescimento da economia.
A sociedade costuma discutir tudo. Carga tributária excessiva, destinação dos gastos públicos, superávit insuficiente, corrupção, salário de funcionalismo, etc. Mas praticamente não se fala que o rentismo se apropria de mais de 5% do PIB todo ano no Brasil (e já foi muito mais). Diferentemente do que ocorre com os gastos com funcionalismo e com os programas de transferências sociais, as despesas com a dívida pública não sofrem o controle sistemático da sociedade ou de órgãos públicos fiscalizadores. É como se tivesse escrito nas estrelas que o país tem que transferir, todo ano, R$ 250 bilhões para alguns milhares de super ricos.
Apesar dos gastos com juros, o déficit público brasileiro é baixo na comparação internacional, tendo caído, na última década, de 5% para 3% do PIB. A dívida pública líquida, que era quase de 60% do PIB em 2002, reduziu-se para os atuais 36% do PIB. A dívida bruta, diminuiu de 80% para 62% do PIB na última década. Esta é uma situação bem mais confortável do que praticamente todos os países desenvolvidos do mundo. Mas o fato é que quando o Banco Central aumenta a taxa de juros (como ocorreu recentemente, quando os juros foram elevados a 11,75%) está decidindo transferir os escassos recursos fiscais do país para os rentistas.
*Economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
Fonte: DIEESE