Resposta a solicitação da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal reforça suspeita de envolvimento de PMs em grupos de extermínio ativos na periferia paulista após ataques do PCC em 2006. Crimes contra a vida cometidos por policiais devem ser investigados de forma independente, defendem Mães de Maio
Por Rodrigo Gomes.*
São Paulo – Provocado pelo grupo Mães de Maio e pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do governo federal a tomar posição sobre a reabertura das investigações sobre os 505 assassinatos ocorridos entre 12 e 20 de maio de 2006, durante o “restabelecimento da ordem” promovido pela polícia paulista após os atentados cometidos pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) naquele ano, o governo de Geraldo Alckmin (PSDB) segue insistindo em ignorar a demanda: em relatório de abril deste ano, divulgado hoje (5) por movimentos sociais, o governo reafirma que não acredita que tenham ocorrido abusos, critica a atuação do órgão federal e defende que não há motivo para reabrir uma investigação arquivada pela Justiça.
O documento enviado pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) responde a um relatório da Comissão Especial “Crimes de Maio”, criada pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que recomenda à secretaria e ao Ministério Público Estadual, entre outras coisas, a reabertura dos processos sobre as mortes que foram arquivados, adoção de medidas para busca e identificação de corpos, verificação do andamento de investigações ainda existentes, assistência psicológica e indenização administrativa às vítimas ou familiares.
Em resumo, a resposta do governo estadual é uma listagem dos boletins de ocorrência registrados à época dos fatos. Alguns dos quais sequer têm relação com os “crimes de maio”. E entre os que estão registrados, há uma clara divisão: supostos autores de ataques a policiais foram encontrados. Mas, entre as vítimas civis, a resposta recorrente é que “o crime não foi esclarecido”. São 402 páginas escritas sem responder aos pedidos da SDH.
Ao final, o delegado geral de Polícia de São Paulo, Luiz Maurício Blazeck, apenas condensa as argumentações de todos os Departamentos de Polícia Judiciária de São Paulo Interior (Deinter), as seccionais de polícia da capital e os departamentos especializados da Polícia Civil, a quem foi remetido o relatório. E enfatiza que a Polícia Civil é um órgão comprometido com a população e que rechaça abusos ou violações aos direitos humanos.
“É um relatório cínico que condiz com as práticas fascistas do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), que nunca reconheceu os crimes de maio nem deu tratamento imparcial às investigações”, acusa Débora Maria Silva, militante do movimento de familiares de vítimas do Estado brasileiro Mães de Maio, organizado a partir dos “crimes de maio” com o objetivo de exigir reparação às vítimas, punição dos autores dos assassinatos e o fim da violência policial.
Chama a atenção a forma como os departamentos limitaram-se a responder burocraticamente, apenas dizendo se tinham ou não casos registrados no período e enviando boletins de ocorrência. Mesmo assim, as informações não batem.
O Deinter 2-Campinas, onde as Mães de Maio registraram nove casos, só aponta cinco. Uma chacina que resultou na morte de três civis, além de um caso de resistência seguida de morte, que não tiveram esclarecimento. E mais um caso de resistência não esclarecido. Porém, seis casos relatados de ataques contra agentes públicos foram esclarecidos.
Na região do Deinter 6-Baixada Santista, onde 75 pessoas morreram no período por motivos e com autoria até hoje inexplicada, o departamento sequer enviou cópias dos registros dos casos. O delegado em exercício em abril deste ano, na seccional de Itanhaém, Luiz Antônio Pereira, rechaçou a ideia de que agentes públicos estivessem envolvidos nos crimes e afirmou que somente um caso de homicídio ocorreu no âmbito dos atentados dos PCC, contra o policial militar Edson Batista de Paula, no município de Peruíbe e que não houve “cenário de reação dos agentes públicos”.
O delegado seccional de Santos, Rony da Silva Oliveira, ressaltou que todos os casos ocorridos na Baixada Santista foram encaminhados à Justiça e que a Defensoria Pública ou o movimento não apresentaram qualquer fato novo que justificasse uma reabertura dos casos.
Débora rechaça este argumento. Ela aguarda até hoje o resultado da perícia realizada pelo IML no corpo do filho dela, o gari Edson Rogério da Silva dos Santos, morto em Santos no dia 16 de maio de 2006 e exumado em 14 de junho de 2012, para retirar uma bala que ficou alojada em sua coluna e poderia dar novos rumos à investigação. “Como podem dizer que não há fatos novos? E o relatório da exumação do meu filho, onde está? Enterraram ele com uma prova no corpo, exumaram e não querem investigar”, protesta a militante.
Na Seccional de Americana (Deinter 9), o despacho não assinado questiona a atuação da comissão, que não teria tido o mesmo empenho em defender os agentes públicos. E que os ataques da facção criminosa “não sofreram qualquer tipo de retaliação ilícita, mas tão somente aquelas previstas em lei”. E continua: “Assim, por óbvio, não se tem qualquer inquérito policial para apurar os denominados ‘crimes de maio’, senão aquele já findo, que apontou a autoria do homicídio que vitimou” os agentes públicos.
Para Débora, a situação demonstra o corporativismo na investigação. “Não dá para esperar que um agente policial da mesma corporação investigue um colega. Isso se repete em todas as unidades policiais. Nós queremos a intervenção do governo federal, por que do governo paulista não esperamos mais nada”, afirmou.
A ativista defende que crimes contra a humanidade, praticados por agentes públicos, não podem ficar na alçada do próprio estado que eles estão subordinados. “O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, do Ministério Público, é muito eficiente para investigar lavagem de dinheiro, mas não consegue atuar contra policiais que cometem crimes contra pessoas. É preciso que a investigação nesses casos seja da Polícia Federal”, defende Débora.
Para elaborar o pedido, a comissão cruzou dados da secretaria, da organização não governamental Conectas Direitos Humanos e do Laboratório de Análises da Violência da Universidade Federal do Rio de Janeiro, chegando ao número de 505 civis e 59 agentes públicos mortos no período, além de 110 feridos e 30 desaparecidos. Não há dados oficiais, exceto pelo número de “autos de resistência” registrados naqueles dias: 124.
O relatório classifica que a ação policial de revide foi marcada por “violência exacerbada, execuções sumárias, chacinas, centenas de homicídios e diversos desaparecimentos”, detalhando que 94% das vítimas não tinham antecedentes criminais e 60% delas receberam disparos na cabeça. Além disso, a perícia concluiu que, nos casos de resistência seguida de morte, a maior parte dos mortos recebeu tiros em regiões do corpo de alta letalidade – cabeça, peito –, a pouca distância e de cima para baixo.
“Na situação de confronto os três aspectos são improváveis, mesmo se os considerarmos isoladamente. Como ocorrem, em muitos casos, simultaneamente, podemos afirmar que houve execuções”, definiu o perito Ricardo Molina de Figueiredo, sobre o caso, no livro São Paulo sob Achaque, citado no relatório.
Esses dados só foram obtidos em virtude de uma ação do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) que se uniu a uma comissão independente montada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) de São Paulo, composta por diversos órgãos de defesa dos direitos humanos, para acompanhar as necrópsias nos Institutos Médicos Legais (IMLs).
No entanto, as investigações sobre a motivação e a execução destas mortes foi arquivada pela Justiça a pedido do MP. Já os casos envolvendo a morte de agentes públicos tiveram a investigação concluída, ainda que alguns casos não tenha sido descoberto o autor.
O secretário Fernando Grella Vieira havia se comprometido em “adotar todas as medidas necessárias visando o desarquivamento dos inquéritos relativos aos ‘crimes de maio’”, em reunião com a comissão no dia 21 de janeiro de 2013 – segundo o relatório –, mas nada ocorreu.
Em maio do ano passado, a comissão decidiu aguardar mais um ano por uma resposta do governo paulista sobre a retomada das investigações. Em julho de 2013, o pedido da comissão foi encaminhado para a SSP. Mas, em vez de ser respondido pela mesma, foi repassado para todos os Departamentos de Polícia Judiciária de São Paulo Interior (Deinter), para as seccionais de polícia da capital e para os departamentos especializados da Polícia Civil, para que se manifestassem quanto as recomendações. Isso em abril deste ano, quase no vencimento do prazo.
Segundo Débora, o movimento vai recorrer novamente ao governo federal para tentar reabrir as investigações dos assassinatos ocorridos em maio de 2006. Débora já havia levado o pedido de “federalização” – oficialmente chamado de Incidente de Deslocamento de Competência, quando um ente federado se demonstra incapaz de conduzir uma investigação de crimes de lesa humanidade – ao ex-procurador-geral da República Roberto Gurgel em 2009. Mas até hoje o pedido não houve resposta.
“Queremos uma posição do novo procurador – Rodrigo Janot, empossado em setembro do ano passado – sobre isso. O governo federal não pode mais se esquivar desse crime cometido e perpetuado em São Paulo, com aval do governo e da alta cúpula da polícia e da Justiça. Duas mães de maio já morreram sem saber o que houve com seus filhos, não vamos aceitar que essa história seja esquecida”, relatou Débora, que vai amanhã (6) para Brasília tentar uma audiência.
Caso não obtenha posicionamento da procuradoria, o movimento pretende recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Organização dos Estados Americanos (OEA), para que o Brasil seja questionado internacionalmente sobre a violação de direitos humanos.
Foto: Edison Temoteo /Futura Press
*Da RBA
Fonte: Rede Brasil Atual