No debate promovido pelo Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina para discutir liberdade de expressão, o jornalista Celso Martins trouxe um aspecto da realidade que não aparece muito na discussão sobre a exigência do diploma para o exercício da profissão. A Fenaj insiste no argumento redutor de que o diploma do jornalista melhora o jornalismo que a sociedade vai receber. Isso soa de certa forma até pueril e mostra o quanto alguns dirigentes da categoria estão mesmo completamente alienados da vida real. Celso Martins – que defende o diploma porque acredita que é uma forma de garantir certos direitos aos trabalhadores – problematizou a questão da liberdade de expressão lembrando que desde a consolidação das técnicas jornalísticas inventadas pelos estadunidenses e copiadas de forma acrítica pelos brasileiros os jornalistas perderam a capacidade de dizer sua palavra. Na prática, diz Celso, os jornalistas, que antes eram intelectuais e publicavam longos artigos de opinião e análise, tornaram-se porta-vozes de vozes alheias e não têm mais espaço para um texto de profundidade e de opinião. No geral, quem opina nos jornais são os famosos “articulistas” que necessariamente não precisam ser jornalistas formados, e o texto de profundidade há muito sumiu das redações.
Além das novas técnicas e das novas tecnologias que acabam obstaculizando o bom jornalismo, as condições de trabalho também calam a voz do jornalista. Muitos são obrigados a segurar dois empregos, ganham salários aviltantes, vivem a lógica da superexploração. Isso os torna também piores pessoas, fazendo com que avance o egoísmo e a falta de solidariedade de classe. “O jornalista mesmo já não tem espaço nos jornais e na TV. Não tem como dizer sua palavra”. Assim, se a liberdade de expressão é, como explicou o procurador João dos Passos, a possibilidade de – tendo o espaço – a pessoa não ter sua palavra censurada, então, esse é um artigo muito em falta no jornalismo. O procurador catarinense, analisando os argumentos do STF sobre liberdade de expressão, interpreta a Constituição de forma diferente. Segundo ele, a liberdade de expressão não significa que a pessoa possa falar onde queria e o que queira. “O que a lei diz é que o conteúdo da fala de alguém que tenha um espaço onde se expressar, não pode ser tolhido. Isso não significa que a pessoa possa reivindicar falar em qualquer espaço. Há regras e elas precisam ser respeitadas”. No caso do jornalismo, não haveria obstáculo à lei a obrigatoriedade do diploma. Mas, o STF entendeu diferente.
Outro aspecto que raramente é lembrado nessa cruzada pela retomada do diploma é o papel das universidades. Na convenção de solidariedade a Cuba, no início do mês de junho, em Porto Alegre, conheci uma jornalista gaúcha, Tania Faillace, da velha guarda, que tem uma posição bastante crítica da lógica de mercantilização que tomou conta da educação depois dos anos 40. Segundo ela, cursos esdrúxulos e inúteis, criados apenas para a reserva do mercado, provocaram trágicas brigas entre radialistas e jornalistas, relações públicas e publicitários, acabando, ao final, prejudicando em grande parte os gráficos e todo o pessoal da “cozinha” do jornal impresso. “Eles foram substituídos pela informatização generalizada, que faz um jornalista (com diploma) fazer (muito mal) o trabalho de: repórter, redator, revisor, diagramador, pré-impressor e outros”.
Tania defende que os jornalistas de hoje em dia não deveriam fazer a tarefa dos gráficos, mas o que vê são garotos e garotas recheadas de egoísmo, achando maravilhoso poder fazer tudo e dispensar os demais. “E, assim, eles são operadores informáticos razoáveis, péssimos redatores, com a maioria sequer conhecendo bem o português, e piores analistas de fatos, que é uma exigência básica para se fazer um jornalismo razoável. O jornalismo é uma atividade política e não técnica”.
Por conta dessa idéia ela questiona de forma radical o papel da universidade nos dias de hoje e sua incapacidade de atuar no sentido de transformar a sociedade. Para Tania, o sistema universitário brasileiro tem como objetivo principal manter as classes sociais nos seus “devidos lugares”, sem garantir aos filhos dos trabalhadores o conhecimento que realmente interessa. Ela não acredita que o diploma, saído de uma universidade como a que existe atualmente possa garantir qualidade. Nesse sentido, discutir a universidade e os cursos de jornalismo também é papel de quem se preocupa com a formação do ser que vai exercer a profissão de jornalista. Não bastasse isso, necessário seria também discutir o acesso aos cursos, como bem lembra Tania. Quem consegue hoje fazer uma universidade pública, de qualidade? E qual a qualidade das dezenas de cursos de jornalismo que as universidades privadas oferecem a peso de ouro? As perguntas são muitas e as respostas ganham mais luz dependendo do interesse de cada um.
Se o jornalismo é uma atividade política, como diz Tania, por que foram tiradas dos currículos cadeiras teóricas importantes que envolvem a compreensão da economia, da política, da arte e da cultura do país? Por que os chamados “melhores cursos” são os que direcionaram seus currículos para as áreas técnicas, como se saber fazer uma página na internet fosse o supra-sumo do jornalismo? Por que os debates críticos sumiram das universidades sobrando apenas a mente cativa e colonizada? Na minha modesta compreensão, o jornalismo é atividade política e técnica, e ambas devem andar juntas, siamesas.
Já para os empresários da comunicação, pensar é coisa perigosa. Jornalista precisa saber o mínimo da técnica e ter o máximo de domesticação. Sem maiores compreensões sobre as forças que regem o mundo capitalista de produção, os estudantes dos cursos de jornalismo saem das salas de aula direto para os “matadouros” empresariais levando na bagagem o aprendizado da técnica e da ideologia dominante. E, essa, exige competição, egoísmo, individualismo exacerbado. A vida lá fora é vista como um campo de guerra em que o mais esperto e mais bonito sairá vitorioso. Não é sem razão que hoje, enquanto entram pela porta da frente os jovens e competitivos recém formados, dispostos à multifunção e a superexploração, pela porta de trás saem os jornalistas mais velhos, muitos deles já bem próximos da aposentadoria, porque são muito “antiquados” no trato do jornalismo. Eles insistem em fazer reportagens, enquanto os patrões exigem que dirijam, fotografem, editem, diagramem, revisem, montem blogs, filmem, criem páginas. E tudo isso, uma pessoa só.
Estas são algumas das faces do problema que é fazer jornalismo hoje no Brasil. O diploma é uma delas. No fundo da questão está o tipo de sistema que rege a nação. Enquanto persistir o modo capitalista de produção, a luta dos trabalhadores será sempre reativa, será quase sempre um processo de redução de danos, de “menos pior”. No debate que envolve a decisão do STF precisa ser considerado esse ponto. A volta do diploma, por si só, não garante nada. Como lembra o Celso Martins, os jornalistas seguiriam calados, sem direito a voz real. E também no cotidiano da empresa os trabalhadores seguiriam sendo explorados da mesma forma. A luta então poderia se pautar por um horizonte mais ousado, de mudanças radicais, de transformação real do sistema de organização da vida.
Mas, ainda uma boa parte dos jornalistas acredita que é uma raça superior, afeita e propícia aos salões do poder. Esses parecem não ter recebido a “triste notícia”, como dizia Brecht: não são superiores, são apenas trabalhadores num mundo de superexploração. Mudar esse estado de coisas parece ser a única saída possível. Lembro aqui o caso de Cuba. Para um jornalista de lá é quase incompreensível esse debate que levamos aqui no Brasil. “Como assim, diploma?” É que na ilha caribenha, onde o povo cubano fez uma revolução e destruiu o modo capitalista de produção, qualquer um tem acesso à universidade, seja ele taxista, cozinheiro ou jornalista. Por isso, em Cuba, este tipo de questão não tem sentido.
Já para os jornalistas locais, enquanto não se muda a vida, estes são alguns nós. Cabe desatá-los. Mas nunca sem perder de vista de que há outras formas possíveis de caminhar no mundo. E pavimentar esses caminhos pode ser uma boa coisa para se fazer. Na universidade e fora dela.