Nos preocupa a infância, essa que, a cada dia que passa, é menos ingênua e sonhadora e mais parecida com nós mesmos. Algo tem, porém, de hipócrita virtude em nossa inquietação porque essa infância só é o reflexo do que nós somos, da sociedade que construímos ou à qual nos adaptamos. Uma sociedade que nos ensina a simular, não a ser; que nos instrui para que acumulemos, não para compartilhar; que nos treina para que concorramos, não para que participemos; que nos adestra para a vitória, não para a vida.
Aqueles que começaram vestindo os nossos sapatos e acabaram calçando as nossa ideias para viver são a nossa melhor referência de uma família, de uma escola e de uma sociedade que em vez de educar, doutrina; que em vez de sugerir, ordena; e que, incapaz de corrigir, pune.
Por isso o nosso espanto quando advertimos que os resultados de tanta incapacidade se viram contra nós e nos questionam seu fracasso que é, sobre tudo, o nosso.
Por isso o nosso pesar quando advertimos que as consequências de tanta severidade acabam por nos recriminar a sua solidão, que é também a própria.
Precisavam de cúmplices para naufragar e nós, especialistas em sinistros, nos dedicamos à lavor de afogá-los.
É por isso que os educamos no medo e nos perturba a sua timidez; que os educamos na desordem e nos alarma sua dispersão; que os educamos na desconfiança e nos surpreendem as suas dúvidas; que os educamos no engano e nos espantam as suas mentiras; que os educamos na intolerância e nos desorienta a sua violência.
Para Gara.
Tradução: Tali Feld Gleiser, para Desacato.info.