Por Fernando Bueno Oliveira*
No Brasil, diversas pesquisas direcionadas aos quilombos brasileiros já foram concluídas e várias outras estão em fase de execução. Mesmo diante de tão volumoso número de produções, o que se percebe, ainda, mesmo na universidade, é que, em alguns casos, persistem referências simplistas sobre quilombos. No imaginário social prossegue a definição de que os quilombos contemporâneos se configuram meramente como um agrupamento de negros formado por descendentes de escravizados fugitivos, em geral, das zonas canavieiras, mineradoras e cafeeiras que no Brasil existiram do século 16 ao início do século 20. Geralmente, Palmares constitui o grande modelo de quilombo. Talvez a prevalência de tais pensamentos esteja atrelada às trajetórias intelectuais, acadêmicas e de vida, além do próprio papel da mídia que trata os quilombos, em grande parte das reportagens televisivas, com um alto teor de exotização.
Frente à atual realidade dos quilombos rurais e urbanos, acreditamos que o conceito construído pela historiadora Beatriz Nascimento, uma das primeiras pesquisadoras negras que se dedicaram ao estudo de quilombos brasileiros, e o definido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) são os que correspondem ao mais próximo no que diz respeito às constituições, às organizações, às práticas e às trajetórias dos quilombos brasileiros. Nessa lógica, Beatriz Nascimento, ao definir quilombo, contempla as formas de resistência que o negro manteve ou incorporou na luta árdua pela manutenção da sua identidade pessoal e histórica. Trata-se do Quilombo (Kilombo), que representou um marco na sua capacidade de resistência e organização. Todas estas formas de resistência podem ser compreendidas como a história do negro no Brasil.
Ultrapassando a ideia de que quilombo se configura meramente como uma área delimitada e habitada por descendentes de escravos, o documento da ABA propõe pensar quilombo a partir de um cotidiano de vivências, de práticas de resistência e de experiências vividas que constroem uma trajetória comum, sem a necessidade da construção de um espaço propriamente demarcado. Eis a definição expressa pela ABA: “Quilombo tem novos significados na literatura especializada, também para grupos, indivíduos e organizações. Ainda que tenha conteúdo histórico, vem sendo ressemantizado para designar a situação presente dos segmentos negros em regiões e contextos do Brasil. Quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de população estritamente homogênea. Nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados. Sobretudo consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e na reprodução de modos de vida característicos e na consolidação de território próprio. A identidade desses grupos não se define por tamanho nem número de membros, mas por experiência vivida e versões compartilhadas de sua trajetória comum e da continuidade como grupo. Constituem grupos étnicos conceituados pela antropologia como tipo organizacional que confere pertencimento por normas e meios de afiliação ou exclusão”.
Em Goiás, especificamente em relação ao estudo de quilombos contemporâneos goianos, temos a ciência das riquíssimas produções que vêm sendo realizadas, as quais são portadoras de abastadas informações que têm contribuído significativamente para que outras pesquisas, que vão por esse caminho, desenvolvam-se e colaborem com tal temática.
Da importância do estudo científico sobre os quilombos, a historiadora Beatriz Nascimento nos diz que quilombo assume um significado amplo de resistência negra em diversos espaços (não somente físico) não podendo o quilombo ser tratado apenas como fato do passado ou ser reduzido somente no espaço ou no tempo.
Em relação aos quilombos rurais, observa-se que foi principalmente com a Constituição Federal de 1988 que a questão quilombola entrou na agenda das políticas públicas. Fruto da mobilização do movimento negro, o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) diz que: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. Dessa forma, muitos territórios de quilombos estão sendo reconhecidos pelo território brasileiro.
A Emissão da certificação da Fundação Cultural Palmares (PCP) segue os procedimentos definidos na portaria FCP no 98 de 2007 que incluem a apresentação da ata da assembleia na qual a comunidade aprova o seu reconhecimento como quilombola e relato sintético da trajetória comum ao grupo (história da comunidade); a declaração de autodefinição de que são quilombolas, base territorial, dados da sua origem, número de famílias, jornais, certidões. A área certificada é submetida a um rigoroso laudo antropológico, que dá origem ao Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Esse procedimento vale para os quilombos rurais e urbanos.
Entretanto, as titulações ocorrem de maneira muito lenta, principalmente, por conta da burocracia de órgãos estaduais responsáveis pela expedição das titulações e de outros que atendem em nível de federação, tais como o Incra e a Fundação Cultural Palmares. Juntem-se a esse impasse, os impedimentos judiciais movidos pela classe rural (formada por grandes fazendeiros e empresários rurais) que tornam ainda mais difícil para os quilombolas rurais a conquista do título de suas terras.
Os dados da Fundação Cultural Palmares atualizados até maio de 2014 indicam que, naquela data, a instituição acabava de emitir mais 44 certificados de reconhecimento e traçava a perspectiva de que até dezembro desse mesmo ano outras 39 comunidades recebam seus registros, chegando a 2500 certificações. O reconhecimento é um importante passo no processo de conquista de titulação da terra, entretanto, sem o título da terra, propriamente dito, embora se tratando de comunidades oficialmente reconhecidas, essas famílias continuarão a sofrer com a ameaça de perda de suas terras, principalmente quando se situam próximas ou limítrofes a grandes propriedades rurais.
A Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPISP) disponibiliza em seu portal, informações acerca dos processos de reconhecimento de populações quilombolas rurais e os trâmites de titulações de terra. Atualmente, de acordo com essa fonte, apenas 216 comunidades quilombolas contam com o título de propriedade de seu território. Esse número representa 7% da totalidade estimada de 3 mil comunidades no Brasil, indicando que a atuação governamental ainda está muito aquém do necessário para garantir o direito à terra previsto na Constituição Brasileira e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Em 2014, pelo menos até a segunda quinzena do mês de setembro, o INCRA havia acelerado os processos de regularização fundiária de quatro territórios quilombolas.
Quanto aos espaços negros urbanos, em consideração aos seus espaços físicos de moradia, diferentemente dos quilombos rurais, que, por sua vez, buscam junto aos órgãos expedidores a titulação da terra, os quilombos urbanos se inserem no tecido urbano e vivenciam cotidianos de vida e socialização. Nesse caso, inexiste a busca da aquisição de títulos de terra, mas, por outro lado, em se tratando, geralmente, de áreas periféricas, há a necessidade de uma infraestrutura básica (moradia, saneamento, asfalto, escola, centro comunitário, área de lazer, dentre outros elementos) e a escrituração de casas, que não atendem integralmente as necessidades de seus moradores.
Importantes trabalhos contribuem no sentido de se entender as trajetórias de espaços negros em algumas cidades brasileiras, tais como o de Raquel Rolnik, de 2007, que demonstra a constituição de espaços negros urbanos nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro; o de Andrelino Campos, de 2012, o qual aborda sobre a transição dos quilombolas às favelas cariocas; e o de Claudelir Correa Clemente & José Carlos Gomes da Silva, de 2014, que elenca práticas culturais urbanas relacionadas com seus territórios sociais nas cidades de São Paulo e Uberlândia.
Nas cidades, verificamos que, não por um acaso, os espaços negros se constituem nas periferias ou em outras áreas específicas, geralmente, associadas à imagem de marginalidade. Ao longo de suas trajetórias, esses espaços foram estigmatizados e removidos das áreas que não eram bem vistos e aceitos. Sobre isso, a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik diz que “para a cidade, território marginal é território perigoso, porque é daí, desse espaço definido por quem lá mora como desorganizado, promíscuo e imoral, que pode nascer uma força disruptora sem limite. Assim se institui uma espécie de apartheid velado que, se, por um lado, confina a comunidade à posição estigmatizada de marginal, por outro, nem reconhece a existência de seu território, espaço-quilombo singular”.
Falar de quilombos não é aceitar ou somente expor termos e significados simplistas. Não é tecer considerações descompromissadas com a realidade desse grupo social. Falar de quilombos é evidenciar, dentre outros sentidos, a trajetória de formação e de resistência de grupos negros, os quais, enquanto comunidades assumem uma postura de afirmação perante uma sociedade ainda fortemente marcada por diferentes práticas discriminatórias, as quais, em grande parte, ocorrem veladamente.
Quanto ao direito às terras dos quilombolas, este foi resguardado na Lei 12.288, de 2010, o Estatuto da Igualdade Racial, assegurando-lhes possibilidades de acesso aos bens econômicos e culturais. É preciso superar em definitivo os preconceitos que aparecem travestidos de inúmeras roupagens e impedem um Brasil mais igual. É chegada à hora da redução das desigualdades e da construção de uma sociedade justa e solidária. A igualdade de oportunidades entre negros e não negros haverá de ser o princípio norteador para o desenvolvimento da nação.
*Fernando Bueno Oliveira é mestrando em Ciências Sociais e Humanidades. Especial para o Jornal Opção.
Fonte: Portal Geledés
Foto: Foto de André Cypriano. Divulgação Geledés.