Por Marcelo Camargo. Da vida insalubre de bóia-fria nos canaviais de Guariba, no interior de São Paulo, ao abandono debaixo do Viaduto do Glicério, no centro da capital paulista, a vida de Ivaneti Araújo pouco mudou. Em pouco tempo, o sonho de prosperar na cidade grande desmoronou e a jovem migrante ajudava a engrossar as estatísticas de um dos principais problemas urbanos, a falta de moradia digna.
“Quando eu vim, eu vim com uma realidade, eu vim com vontade de mudar. Eu achei que aqui eu fosse conseguir minha casa, meu carro, tudo muito rápido. Quando falava em São Paulo, a gente pensava em trabalhar e ganhar dinheiro. E me deparei com a cidade grande. A grande selva de concreto”, desabafa.
A situação vivida por Ivaneti no começo dos anos de 1990 não está presa ao passado e à sua história, mas persiste na realidade de muitos que vieram para a maior cidade da América Latina à procura de uma oportunidade de inclusão social. O encaixe em um trabalho quase sempre acontece, porém, em condições precárias e com baixa remuneração.
Sobreviver ao alto custo de vida da capital paulista não é fácil. O aluguel de uma “kitnet” (quarto conjugado com e cozinha e banheiro de aproximadamente 40 m²) na região da Santa Cecília tem custo médio de R$ 1,5 mil. O bairro está localizado na região do baixo centro de São Paulo, onde os imóveis, em geral, são mais desvalorizados.
Se considerada a remuneração de um salário mínimo, que atualmente é de R$ 724, fica expressa as dificuldades de se habitar a cidade, como também o processo de expulsão da população mais pobre para as áreas periféricas.
O coordenador da Central de Movimentos Populares (CMP), o advogado Benedito Barbosa explica que as ocupações realizadas por movimentos de moradia acontecem devido ao alto custo dos aluguéis com a intenção de pressionar o Poder Público para que viabilize habitações na área central da cidade.
“Primeiro, há um aumento grande no custo dos aluguéis por força da especulação imobiliária na cidade, as famílias ganham um salário baixo e não conseguem pagar esse aluguéis, então a única alternativa que essas pessoas têm é morar em algum lugar, na periferia ou no centro da cidade”, afirma.
Ele ainda pontua a importância de se promover habitação na região do centro por ser o local onde, normalmente, está o trabalho dessas pessoas, além da boa infraestrutura e da proximidade com serviços públicos.
Dados do informativo da Prefeitura de São Paulo “Especial IPTU”, publicado em 2011, apontavam para 400 mil imóveis vazios no Centro Expandido da capital. De acordo com a publicação, somente as regiões da Sé, Mooca, Bela Vista, Brás, Cambuci, Liberdade e Santa Cecília tinham capacidade de abrigar 154 mil unidades para até 1 milhão de pessoas.
Direito à moradia
No lado oposto aos imóveis vazios estão trabalhadores de baixa renda que sofrem com a falta de moradia, vivem em habitações precárias e ficam a mercê da especulação imobiliária. Ivaneti lembra bem do choque com a “cidade grande”, que prometia uma mudança de vida na conquista de direitos sociais, mas que reconheceu apenas sua força de trabalho. Diante do abandono do Estado, ela conta como conheceu a luta do movimento de moradia.
“Passei por vários alugueis; não deu certo. Morei embaixo do Viaduto do Glicério. Fui moradora em situação de rua. Fui despejada e fui morar para lá. O meu menino na época eu tinha mandado para minha mãe, que na época era viva. Fiquei só com as duas meninas, morando na rua. E aí passou o movimento chamando a gente para fazer luta, para entender o direito à moradia”, relata.
Embora seja garantido pela Constituição Federal, o direito à moradia para a maioria dos brasileiros só é conquistado através de muita luta. Há 20 anos no movimento de moradia, Ivaneti passou por várias ocupações de prédios, reintegrações de posse e despejos.
A história de Ivaneti vai ao encontro da de milhares de trabalhadores que estão organizados nos movimentos. Antônia Nascimento, coordenadora do Movimento Sem Teto pela Reforma Urbana (MSTRU), explica qual é o perfil das pessoas que participam das ocupações.
“Essas pessoas geralmente são mães solteiras, pessoas que vivem numa extrema dificuldade social. Essa família quando vem nos procurar, o movimento busca auxiliar na busca da Educação, na busca da Saúde, faz um trabalho completo dentro desse contexto.”
Antônia se queixa do olhar preconceituoso que as pessoas formulam em relação aos sem-teto e acredita que isso se deve à maneira como as lutas são retratadas.
“A ocupação não significa que a intenção da pessoa é querer o que é dos outros, como a mídia fala, ou morar de graça. Não, eles querem pagar a prestação, água, luz. Eles querem fazer parte da sociedade exatamente dessa forma, fazer com que seus direitos sejam garantidos, que eles possam ter um endereço”, destaca.
Os imóveis ocupados por movimentos de moradia têm um histórico de abandono e, geralmente, possuem dívidas altíssimas junto à administração pública. A luta é para que imóveis não utilizados sejam desapropriados a preço justo e tenha um destino social, com prestações possíveis de serem pagas pelos trabalhadores de baixa renda. Ou, que sirvam de moradia provisória até que o Poder Público promova condições da conquista da moradia definitiva.
Em 2007, Ivaneti conquistou sua própria casa. Após dois anos e meio na ocupação de um prédio na rua Ana Cintra, 123, no centro de São Paulo, novamente sofreu com uma ação de reintegração de posse, que a levou a viver com a família na rua. Só que dessa vez estava acompanhada de outras 97 famílias.
O prédio já havia sido desapropriado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), mas as unidades habitacionais não foram destinadas para as famílias que estavam na ocupação. A interpretação da CDHU foi questionada na Justiça, e posteriormente a companhia teve que remanejar as famílias para um prédio na Mooca.
Ivaneti ainda paga as prestações da sua casa, que atualmente está em R$ 178 mais o valor do condomínio e outras contas. Ela conclui qual é o resultado dos anos de enfrentamento à desigualdade. “Então, essa é a luta. É transformar os imóveis vazios em moradia social para essas famílias”, afirma.
Duas estimativas
De acordo com a Secretaria Municipal da Habitação, o déficit habitacional na capital paulista é 230 mil casas – número contestado por Barbosa.
“Cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas precisam de moradia. Agora se envolver programa de urbanização de favelas e regularização de loteamento isso pode chegar a atingir cerca de 3 milhões de pessoas na cidade; 30% da população mora muito mal ou não tem moradia, o déficit é muito alto; 1 milhão e 200 mil pessoas morando em favelas; quase 2 milhões morando em lotes irregulares; 500 mil morando em cortiços; 20 mil pessoas morando nas ruas. Só na região central da capital, temos 40 mil imóveis vazios.”
Sobre o número de ocupações na cidade, a estimativa da secretaria é de que existam 90 – entre prédios e terrenos, sendo que dessas 45% estão na região central e concentram cerca de 4 mil famílias. Esse levantamento desconsidera as ocupações em áreas particulares. Sozinho, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), por exemplo, reúne cerca de 15 mil famílias em suas ocupações.
Judiciário erra
A Constituição Federal de 1988 estabelece que a propriedade deve cumprir sua função social, cabendo ao Poder Público municipal exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento. Isto sob pena, sucessivamente, de parcelamento ou edificação compulsórios; imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo e desapropriação.
Barbosa ressalta que o Poder Judiciário não tem cumprido o que está previsto na Constituição, nem no estatuto da cidade e nos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. “A propriedade não é um direito absoluto, ela tem que levar em conta a aplicação da sua função social. É sobre esse aspecto que nós dizemos que não há o cumprimento da lei”, explicou.
A gerente jurídica do Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns, Júlia Moretti, também tem esse entendimento. Ela explica que as decisões judiciais deveriam dar mais valor à posse que cumpre a função social do que a propriedade que não cumpre.
“O que não é admissível, em nome da cidade sustentável, de todas as diretrizes e até da lei, é que um prédio fique abandonado sem nenhum uso durante anos e que seja guardado apenas como especulativo. Isso vai contra o Estatuto da cidade”, explicou.
Peixe não vive fora do Aquários
Alguma coisa aconteceu quase cruzando a Ipiranga com a Avenida São João, no último dia 16 de setembro. As pessoas que chegavam à frente do prédio no número 601 da São João nada entendiam debaixo das bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela Tropa de Choque da Polícia Militar. Não era encenação da poesia de Caetano Veloso, mas sim uma reintegração de posse.
O prédio, construído há dez anos para funcionar como um hotel, nunca chegou a ser inaugurado. Em março deste ano, a Frente de Luta por Moradia (FLM), resolveu dar uso ao prédio vazio quase no coração da capital. Cerca de 200 famílias ocupavam o antigo Hotel Aquários, entre idosos, crianças, pessoas com necessidades especiais, recém nascidos e mulheres em período de resguardo. As cenas de violência promovidas pela PM contra os moradores da ocupação deixaram traumas. Logo após a reintegração de posse do prédio, Carmem da Silva ainda procurava notícias da filha e da neta de onze meses que estavam no prédio.
“Tinha mais de 50 crianças, tiveram crianças desmaiadas lá dentro e eles não respeitaram ninguém. Tiveram pessoas que saíram daqui de ambulância só que as crianças de 0 a 2 anos estavam todas lá dentro.”
Na rua, a ação da PM não foi diferente. Com escudos e capacetes, os policiais avançaram em direção dos ocupantes do prédio que já estavam do lado de fora do imóvel e lançaram balas de borracha e gás lacrimogêneo por toda parte.
Ivaneti estava lá. Do lado de fora do prédio, como uma das coordenadoras da Frente de Luta por Moradia (FLM), juntamente com os advogados dos movimentos e Defensoria Pública, tentavam negociar com a Tropa de Choque. Buscavam evitar o conflito, e que se repetisse a abordagem truculenta já conhecida nas ações da corporação.
Após a reintegração de posse, 79 moradores foram presos para prestar “esclarecimentos” e depois foram liberados. Ivaneti narra a ocorrência de uma série de violações.
“Foram crianças, foram adultos, idosos, pessoas mancando, machucadas. Ficaram todos em um posto de gasolina e uma corrente de policiais daquela equipe força de braço, com uma arma de calibre 12, e o povo sentado no posto de gasolina como se eles fossem os bandidos da vez. Não respeitaram nem o Conselho Tutelar quando foi lá.”
Mesmo tendo conquistado sua casa há 7 anos, Ivaneti não se afastou do movimento de moradia. Depois de viver com a família em situação de rua, conhecer o medo do despejo e lutar em ocupações, ela sente a necessidade de continuar dando sua contribuição para a construção de um mundo melhor.
“O peixe não fica fora do aquário, nem da água, nem do rio, nem do mar, não é verdade? Então, eu gosto de estar na luta, continuo na luta.”
As famílias que estavam no Hotel Aquários foram remanejadas pelo movimento para outra ocupação na Avenida Libero Badaró, 595. Para o dia 9 de outubro está marcada a reintegração de posse desse imóvel, que também está abandonado há mais de dez anos. Ivaneti já viu esse filme. A depender dos governantes e do Judiciário continuará vendo muitos outros. (Colaborou Bruno Pavan).
Foto: Reprodução/Brasil de Fato
Fonte: Brasil de Fato