Por: Fernando Boppré
Nota sobre casas, lares, cafofos, estúdios e afins
Territórios transformados em propriedade. Espaços de proteção do indivíduo lançado no interior de uma sociedade que ele não escolheu. A disposição dos móveis, o posicionamento dos pertences, a distribuição dos cômodos deve refletir a personalidade daqueles que neles habitam. Não por acaso o mercado editorial oferece uma infinidade de revistas e livros com sugestões para o lar, publicações sobre a sala de jantar, o jardim, apartamentos, a casa de campo e tudo mais.
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Notas sobre CASA
1.
Em meio a um típico bairro residencial da cidade de Florianópolis, em Santa Catarina, Brasil, instalou-se CASA. Contraponto ao ordinário do lar abriu-se por três semanas para visitações. Passou a receber pessoas diversas que tomaram conhecimento da notícia de que lá havia uma exposição. Detalhe: o convite era uma chave com um pequeno chaveiro que trazia o mapa para a localização da residência. A chave era lisa, não tinha fendas: não abria nada ou coisa alguma, portanto.
Ao chegar, recebia-se a seguinte saudação: “Sejam bem vindos à Casa! Possuímos duas entradas, uma pela porta da frente, e outra pela porta dos fundos, ao redor da casa temos algumas janelas que também poderão servir como entrada, caso prefiram… a área de fumantes é somente aqui nesta mesa na frente, não é permitido quebrar nenhum vidro ou objeto da casa, e por favor evitem entrar pela janela da cozinha, a pessoa que está lá não iria gostar… tomem o seu tempo para explorar ou vasculhar cada parte ou canto da casa!”.
Com isso, desenhava-se uma espécie de portal, pré-texto que inseria o público num universo onde vidros não serviam para separar, portas não encerravam, cômodos não dividiam e a cozinha era espaço deliberado de subversão. Todos intrigados. O que se passava ali? Logo, contudo, sentiam-se em casa. Porque se, de uma parte, havia um desconcerto nas ações que os corpos e objetos executavam no interior da CASA, de outra parte, existia poesia em tudo aquilo. E talvez o momento mais sutil se encontrasse após o público atravessar todo o espaço da CASA, chegar ao quintal dos fundos e se deparar com uma atriz vestida de branco, cercada por alvos tecidos estendidos no varal. Por vezes, ela estava deitada sobre a divisória da casa, o muro – este substantivo concreto que separa uma coisa da outra mas que ali servia de base abstrata para canções de amor.
Na CASA um músico cutucava copos, alisava pratos, invadia cumbucas. Som e fúria. Sala era livro aberto para inscrições com TV de outrora de imagens lisas, corridas, manifestações do nada. O telefone tocava e o estranho inesperado do outro lado da linha perguntava de quem era aquela casa, quem fazia música, afinal de contas, o que se ocorria ali? Eu respondia: era casa de maluco, por isso mesmo não tem nome nem dono. Era simplesmente, CASA.
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2.
CASA tinha sala, quarto, varanda, cozinha, banheiro, quintal. Porta de entrada e saída; centro e passagem. Caixa de reverberação: utensílios de jantar reviravam-se em instrumentos sonoros. Gente se espalhava pelo sofá. Um dos quartos deixava fresta pela fechadura: uma visada para o interdito. Fogão a todo o vapor. O espaço inventado pela CASA era o do viver junto barthesiano. O que era quarto tornava-se sede de uma improvável cena de arrumação obsessiva da cama. Uma dançarina de pijamas revirava-se sobre o colchão para depois invadir a parede com seu corpo na vertical, deslizando para baixo das cobertas para logo descobrir-se. Desde ali, a descoberta era que a CASA nos impunha uma sequência de imagens constituída de gestos, sons, luzes, ruídos, movimentos diversos. Janela aberta para a passagem de corpos.
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3.
Em Florianópolis existem outras casas onde a arte invade o que até então se entendia por residência. a) casa do artista-religioso Carlos Asp. Aquele espaço repleto de tudo, onde homem e coisas por ele reunidas se confundem. É ali que ele deve achar um vão livre para ficar na horizontal e dormir. Ou então, colocar coisas miúdas em cima da mesa da cozinha para poder dispor de papel, lápis e desenhar. b) mundo ovo de Eli Heil: o que era residência tornou-se pouco, foi tomada de assalto por telas, papéis, instalações. Ela teve que se mudar, construir casa grande ao fundo. Não obstante, nova invasão. O terreno fica pouco. Se Eli viver cem anos, serão necessárias novas casas, outros mundos ovos. c) E mais, no hospício de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro: o homem santo Arthur Bispo do Rosário que teceu obras para um Deus qualquer e fez transbordá-las do espaço de sua cela, passando a ocupar outras tantas, tornando-se o senhor do Pavilhão 10 na Colônia Juliano Moreira.
CASA distancia-se dos casos anotados acima. Porque surgiu, existiu e desfez-se. Como a cama do quarto de dormir. Não há proposição de longa duração para ela. Algumas pessoas questionavam: qual a próxima exposição que vai acontecer aqui? A lógica dos projetos culturais que propõem retoricamente a democratização aos bens artísticos e culturais não existia ali. Por essas e outras, muitas vezes seria mais pertinente encarar a casa como um palco, um tablado.
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4.
Este texto é dividido em cômodos, em boxes (a metáfora da caixa que serve para encerrar um corpo para tomar banho ou informações breviárias em páginas de jornal). Mas agora abandona o box e vai para o quintal. Como quem sai para fumar um cigarro e ver a lua. Olhar para a lua no interior de uma casa é sempre uma experiência singular. Imaginar que a uma distância inconcebível há um território inteiro desprovido de algo, de coisa qualquer. O homem envia seus desejos à lua e às estrelas porque eles se apresentam com uma metáfora do nada, do vazio. Lá, portanto, os desejos que não encontram espaço aqui por baixo podem ser projetados. CASA era meio termo entre lua e terreno, entre propriedade privada e terra comunal, entre cabana e desterro.