Por Simon Allison. Quantas pessoas precisam morrer antes que uma tragédia chegue à primeira página? Quantas pessoas precisam deixar suas casas e seus países até que a crise seja grave o suficiente para interessar leitores, espectadores e ouvintes?
Jornalistas precisam de números: de pessoas mortas, desabrigadas, refugiadas. Isto é feito por organizações internacionais, como as Nações Unidas. Elas se fiam em números para descobrir quanto dinheiro e que tipo de recurso deve ser investido em um desastre específico. Grupos humanitários precisam de números para coordenar suas respostas e determinar para onde enviar auxílio em primeiro lugar. Grupos de apoio a diferentes causas humanitárias precisam de números para promover a conscientização sobre essas questões, e de fundos para pagar por seus suprimentos e esforços.
Estes números são a base sobre a qual se constrói a intervenção humanitária. Eles são a moeda corrente no mundo da resposta às catástrofes. Sem eles, as organizações agiriam às cegas: sem conhecimento da escala dos problemas e, portanto, parcamente equipada para lidar com eles de maneira adequada.
O UNHCR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) afirma que 5,9 milhões de pessoas no mundo tiveram de deixar suas casas nos primeiros seis meses de 2013, comparadas a 7,6 milhões em todo o ano de 2012. Na África, o UNHCR estima que havia 3,7 milhões de refugiados em junho de 2013. Segundo a MSF (Médicos Sem Fronteiras), a cada dia mais de mil sul-sudaneses deixaram o país rumo aos vizinhos Etiópia, Quênia e Uganda, desde o início das hostilidades com o Sudão em dezembro de 2013. Cerca de 500 mil pessoas deixaram o norte do Mali para se tornarem deslocados internos ou refugiados em países vizinhos desde o início dos conflitos, em janeiro de 2012, de acordo com uma pesquisa da Refugees International, organização humanitária com sede nos EUA. A Human Rights Watch afirma que 55 mil somalis exilados vivem em Nairóbi, capital do Quênia.
Obviamente, estes números não são exatos. Eles são arredondados, cálculos aproximados, e não contagens precisas. Isto faz sentido, dado o contexto em que os números são gerados. As pessoas listadas acima estão fugindo ou escapando de zonas de guerra e de áreas onde ocorreram desastres naturais, locais em que a ordem vigente se desintegrou tão drasticamente que as pessoas são forçadas a deixar suas casas. A manutenção de registros não é uma prioridade e, frequentemente, não é uma possibilidade.
Isto levanta a seguinte questão: de onde vêm os números? Axelle Ronsse, epidemiologista dos MSF, está lidando com estas questões em Bangui, capital da República Centro-Africana. Seu trabalho é contar as pessoas e os corpos no lotado acampamento de desabrigados instalado nos arredores do principal aeroporto da cidade. Os números obtidos por ela determinarão a resposta dos MSF à crise.
Para estimar o número de pessoas nos acampamentos, Ronsse utiliza três técnicas diferentes. Primeiro, ela se baseia na estrutura de liderança do acampamento. O acampamento está dividido em 88 setores, cada um sob uma liderança. Ronsse contata o líder de cada setor, solicitando uma contagem precisa. Isto não é tão simples e, é claro, está sujeito à manipulação. Os líderes dos setores acabam aumentando os números, porque a distribuição de alimentos depende do número de pessoas vivendo em cada setor. “Quando as pessoas veem você as contando e pedindo informações, sempre pensam na distribuição de alimentos, e tentam então inflar os números”, explica Ronsse. “Eu entendo. Eu faria a mesma coisa se estivesse nesta situação”.
Para compensar, a epidemiologista usa dois outros métodos estatísticos, baseados na amostragem aleatória da população do acampamento. Ambos se baseiam em pesquisa por GPS da região do acampamento, gerada pela própria médica com um dispositivo GPS portátil.
Com estas informações, Ronsse solicita que um computador identifique 50 pontos aleatórios no acampamento. Em cada um destes pontos, ela vai até uma residência e conta o número de habitantes. No acampamento do aeroporto de Bangui, ela também precisa observar se alguém voltará para casa à noite. “Idealmente, isto deveria ser feito à noite, mas por motivos de segurança, não posso fazê-lo”. Então ela insere os dados em um software especial, que utiliza algoritmos elaborados para extrapolar a amostra em uma estimativa geral.
O terceiro método é semelhante, mas, em vez de se basear em 50 pontos, o computador especificará 15 áreas de 25 metros quadrados. Ronsse e dois membros de sua equipe cercam cada área com fitas vermelhas e brancas, pesquisando a população de todas as residências dentro da área delimitada. Novamente, os dados alimentam um software que fornece uma estimativa geral.
Estes três métodos em conjunto supostamente fornecem um panorama bem próximo do número real de desabrigados. Se Ronsse tivesse acesso a imagens por satélite da área, ela também incorporaria este método. As imagens por satélite sozinhas, no entanto, podem gerar números pouco confiáveis, acredita. “Não é suficiente por si só”, diz. “Eu sei que há casas vazias e não posso saber quais estão ocupadas ou não”.
Isto explica as 10 mil pessoas a menos contadas pelos MSF no acampamento de Bangui, em comparação com as 100 mil identificadas no início de janeiro pela UNHCR, que se baseou principalmente em imagens por satélite. Como regra, a UNHCR mantém o mais abrangente banco de dados com estatísticas sobre refugiados. Trata-se do primeiro recurso para qualquer pessoa que esteja buscando informações confiáveis e abrangentes, já que a organização monitora e rastreia refugiados no mundo todo. A informação é tornada pública por meio de um banco de dados on-line e de um anuário.
“A coleta de dados continua sendo um processo complexo, envolvendo vários atores, como governos, ONGs, parceiros de operação e as equipes locais da ONU, entre outros”, explica o anuário de 2012 da organização. “Este processo é frequentemente um esforço colaborativo, que em muitos casos exige a anuência de todas as partes envolvidas. No contexto dos refugiados, a coleta de dados é normalmente coordenada pela UNHCR e pelo governo em questão”.
A UNHCR definiu cuidadosamente o processo ao longo de seus 64 anos de existência. “Ao longo da última década, os métodos para coleta de dados sobre refugiados permaneceram virtualmente inalterados, com as principais técnicas sendo compostas por censos, registros e levantamentos ou estimativas”, afirma o anuário da UNHCR.
Enquanto a UNHCR é a primeira fonte de dados sobre refugiados, o IDMC (Centro de Monitoramento de Desabrigados Internos, na sigla em inglês), grupo com sede em Genebra, conta com o apoio das Nações Unidas para rastrear pessoas internamente desalojadas, uma tarefa ainda mais difícil. “Algumas diferenças que se destacam são o fato de que as pessoas que cruzam fronteiras normalmente são contabilizadas por autoridades de segurança internas, seja no processo de determinação do status de refugiado, seja nos programas assistenciais nacionais”, explica Alexandra Bilak, chefe de políticas e pesquisa da IDMC.
“Desabrigado interno não é um status jurídico, o que significa que as pessoas podem não ser contabilizadas ou registradas”, diz Bilak. “Além disso, pessoas que cruzam fronteiras tendem a seguir rotas mais ou menos semelhantes, enquanto os desalojados em seu próprio país podem ir para qualquer lugar. Finalmente, no final das crises, o retorno e a repatriação de refugiados normalmente ocorrem como processos administrados (seja pelos governos, seja por agências internacionais), o que tem um grande impacto na manutenção dos números”.
A IDMC utiliza pesquisas por domicílio e técnicas de extrapolação para fornecer seus números.
Os números da UNHCR e da IDMC são os mais prestigiados pelas agências internacionais, já que são considerados relativamente rigorosos. Mas nem sempre. Por exemplo, os governos fornecem mais de um terço das estatísticas sobre refugiados da UNHCR. Estes números podem variar enormemente em qualidade, especialmente quando os governos trazem uma agenda política para a coleta de estatísticas. “Talvez a característica mais importante sobre o desalojamento interno, especialmente quando se trata de desalojamento induzido por desastres naturais, é que isso acontece no mundo todo e em países com diferentes níveis de abertura política, sistemas de dados e atividade dos setores civil e acadêmico”, diz Bilak. “A precisão e confiabilidade dos dados sobre desalojamento internacional variam da mesma maneira”.
Como resultado, organizações humanitárias internacionais importantes nem sempre confiam nestes números. Em vez disso, empregam pessoas como Brian Root, um analista quantitativo da organização Human Rights Watch. Ele é responsável por checar dupla e triplamente todos os dados antes que sejam usados em qualquer tipo de comunicação pública.
Root leva em consideração vários itens: “Como algo foi medido, quais foram as definições usadas, qual foi a metodologia de amostragem, os instrumentos da pesquisa, as hipóteses feitas na análise estatística, as parcialidades presentes nos estudos, entre outros fatores”, explica o analista. “É uma lista longa. E, por isso, nós frequentemente não nos sentimos muito confortáveis ao citar os números, especialmente os coletados em conflitos ativos, porque muitos dos números gerados não passam na maioria dos testes metodológicos”.
A importância de dados fiáveis no trabalho humanitário não pode ser superestimada. “Dados confiáveis e precisos são centrais para qualquer decisão relacionada à política dos deslocamentos forçados”, explica o anuário da UNHCR. “Nessas situações, decisões políticas infelizes, com base em dados pouco precisos ou pouco confiáveis, podem ter consequências humanitárias catastróficas”.
Trabalhando na prevenção destes desastres estão equipes de pesquisadores in loco, estatísticos e analistas que desenvolveram procedimentos rigorosos para produzir dados confiáveis. Os dados são perfeitos? Certamente não. Mas é o melhor que temos. O trabalho humanitário estaria à deriva sem eles.
Foto: Reprodução/Opera Mundi
Fonte: Opera Mundi