Por Elaine Tavares.
Já faz algum tempo que a Venezuela saiu da agenda da mídia comercial brasileira e estadunidense. Chávez, que aparecia como uma ameaça constante ao projeto de “democracia” que os Estados Unidos desenhou para a América Latina, morreu, e seu sucessor não tem a mesma verve ou carisma. Assim, hoje, quando a Venezuela aparece nos noticiários é apenas para reforçar a ideia de que por lá existe uma ditadura ou para registrar alguma coisa ruim na conjuntura, principalmente no que diz respeito à crise de desabastecimento que acontece atualmente, ao alto índice de violência ou a alguns distúrbios gerados por forças de oposição – que são noticiados como violência por parte do governo. Sobre isso sempre é bom reafirmar: o governo da Venezuela não é uma ditadura. É um governo eleito democraticamente, bem aos moldes da incensada democracia burguesa, no voto. É certo que pode-se questionar o processo, o presidente ou o que quer que seja, mas dizer que é uma ditadura é agir de má fé. Se assim fosse, poderíamos chamar de ditadura o governo de Barak Obama, por exemplo, que sequer passa pelo crivo do voto direto da população.
Quanto ao desabastecimento, corrupção e violência, esses são problemas reais que o país vive. É sabido que a Venezuela é um país que se sustenta sob a renda do petróleo, sem qualquer lastro na produção. Durante o processo de revolução bolivariana, esse foi o ponto central da luta de Hugo Chávez: fazer com que o país passasse também a produzir comida, manufaturas, enfim, criasse um parque industrial e agrícola capaz de sustentar suas demandas internas. Infelizmente, Chávez não conseguiu criar novas matrizes de desenvolvimento. Isso ocorreu por alguns erros de condução, mas fundamentalmente por conta do fato de que nos 13 anos em que ficou à frente do governo, Chávez precisou enfrentar uma oposição ferrenha, de dentro e de fora, que gerou um golpe de estado e muitos outros conflitos difíceis de resolver. Ao longo do processo, a proposta revolucionária que capitaneava o bolivarianismo era a de organização popular. Depois de séculos de opressão e invisibilidade, as gentes venezuelanas precisavam de muito trabalho para assumir o protagonismo de suas vidas, como sujeitos históricos do que acontecia no país. Foram anos de construção da organização comunitária e popular. E isso era necessário para, depois, entrar em outros campos de mudança, como a transformação da matriz produtiva.
Em meio a tudo isso, o governo precisou organizar eleições, criou uma Constituinte, discutiu e aprovou uma nova Constituição, sofreu e venceu um golpe e aprofundou a participação popular. São transformações que não se fazem a toque de caixa. Precisam de discussão, participação e mobilização. Enquanto isso acontecia, o governo criou os Mercados Populares, estabeleceu parcerias com os países vizinhos e foi tentando organizar a produção. Essa era, talvez, a tarefa mais dura. Sair de um estado de parasitismo completo da renda petroleira e ensinar a população a fazer coisas que nos parecem muito simples, como cultivar a terra, por exemplo. Mas, é preciso entender a realidade venezuelana para compreender o nível de dificuldade que isso implica. Os governos anteriores, que sempre encheram os bolsos com o dinheiro do petróleo, nunca se preocuparam com tornar a Venezuela um país autossustentável. Ao povo pobre não era oferecida qualquer solução que não a endêmica miserabilidade.
A proposta bolivariana, comandada por Hugo Chávez, muda radicalmente a distribuição do dinheiro do petróleo. E os dólares que iam descansar no estrangeiro começaram a produzir políticas públicas para aqueles que nunca na vida tinham sido sujeitos desse mecanismo. Nascem as missões, com o propósito de, desde a organização de base, popular, promover saúde, educação, segurança, moradia, acesso ao gás, ao esgoto, a coisas básicas, que até então não estavam dadas. Sem lugar a dúvidas, isso foi uma revolução.
Mas, enquanto esse processo de reversão de prioridades para uso da renda petroleira se fazia, também era necessário pensar a produção. Grandes foram os debates sobre a economia endógena, que se fizesse desde dentro, mudando os hábitos de um país que sempre importou tudo o que consumiu. Era hora de começar a produzir, dizia o comandante, mas isso não era coisa fácil.
A morte prematura de Hugo Chávez cortou esse processo. Novas batalhas conjunturais precisaram ser travadas. Houve quem quisesse impedir que o vice eleito, Nicolás Maduro, assumisse. De novo, toda a máquina governamental teve de se voltar para a defesa do processo democrático. E isso gera um esforço tremendo de todas as forças governamentais e populares. O governo de Maduro começa em meio a toda essa crise, provocada desde fora, pelos inimigos de sempre, e também desde de dentro, pelos inimigos locais. Os problemas do país que, com Chávez, vinham sendo atacados, se avolumaram e, com Maduro, passaram a ter outra condução. Isso fez com que muito do processo bolivariano se esvaísse.
Por isso que, hoje, a realidade venezuelana se apresenta com matizes mais conflitivas. Os problemas crônicos ressurgem com mais força. O governo não consegue dar respostas a questões como a telefonia fixa, por exemplo, extremamente ineficaz, principalmente no interior do país. O desabastecimento também é uma realidade concreta. A comida chega a ser vendida no mercado paralelo e há casos como os dos pescadores da Ilha Margarita que levam seus barcos carregados de peixe e gasolina para alto mar e lá vendem os produtos em dólares. Os casos de corrupção se avolumam, inclusive entre os governantes, principalmente nas cidades pequenas, onde atuam como pequenos tiranos. Tudo isso é verdade.
Mas, o que precisa ser levado em conta é que o processo bolivariano não aconteceu a partir de uma revolução clássica, na qual as forças contrárias foram exterminadas. Não. O processo foi democrático, com as forças inimigas no combate diário e sistemático, dominado inclusive os meios de comunicação. Houve os que assumiram o “chavismo” de última hora, porque era mais seguro, e hoje mostram as garras e os efeitos de suas verdadeiras formações. Os inimigos do processo bolivariano estão atuando diuturnamente, fomentando a desinformação, o conflito, o tempo todo, muitas vezes até dentro dos escalões de governo. É a luta de classe se fazendo dia após dia, na batalha cotidiana.
O governo tenta atacar os problemas, mas muitas vezes troca os pés pelas mãos. O presidente Maduro carece da força monumental que brotava em Chávez. Ainda assim, ele busca medidas que diminuam a insegurança com relação à economia. Na última semana, por exemplo, decidiu integrar no Ministério da Alimentação os vice-ministérios de Produção Alimentaria e do Sistema Socialista de Alimentação, para que, juntos, encontrem saídas ao desabastecimento. Também decidiu criar uma auditoria para investigar as empresas relacionadas com o sistema de importação e distribuição de alimentos – esse ainda na mão dos mesmos velhos sugadores da economia venezuelana; e um escritório especial para fiscalizar o sistema alimentário como um todo, tentando evitar que a comida vire uma mercadoria de luxo, escondida pelas mãos dos especuladores.
Ainda no campo da batalha pela distribuição da comida, o governo criou uma corporação produtora, distribuidora e de mercado de alimentos para garantir que os alimentos cheguem nas casas dos venezuelanos. É claro que essas medidas, por si só não garantem muita coisa, uma vez que é a correia de corrupção que tem desviado comida e gerado o desabastecimento. Mas, o fato de o governo agir em consequência, e rapidamente, mostra à população que há esperanças.
É importante lembrar que ondas de desabastecimento sempre existiram na Venezuela, uma vez que, como já foi dito, até Chávez, o país vinha vivendo sob o domínio da renda petroleira, sem política de produção própria e, por conta disso, a população mais pobre segue acreditando no governo e defendendo o processo bolivariano. Segundo o economista Nildo Ouriques, “antes de Chávez, havia desabastecimento e o povo passava fome. Hoje, segue tendo desabastecimento, mas o governo age para garantir a comida na mesa dos empobrecidos. Isso é uma fundamental diferença. A população não é burra, sabe que em outro tipo de governo, a fome volta. Por isso há muito apoio ainda”.
A batalha pela manutenção das conquistas da revolução bolivariana segue aos tropeços na Venezuela. É uma queda de braço diária. Diante das impossibilidades o processo revolucionário arrefeceu. Hoje, trata-se de manter as conquistas, quando seria necessário avançar mais. Para o professor Nildo Ouriques, que também acredita que a revolução mesmo já encerrou seu ciclo, “ainda assim fica a lição histórica para o povo venezuelano. A luta de classe avançou enormemente nesses anos. A população aprendeu, participou, viveu experiências que não podem mais ser escondidas ou esquecidas. Isso é um ganho político inquestionável”.
A experiência da Venezuela, que lançou uma lufada de vento fresco sobre a América Latina, fraqueja, mas ainda não está derrotada. Porque as experiências que fazem as pessoas avançarem na consciência de classe são indeléveis, nunca se apagam e sempre podem retornar, quando se fizerem necessárias. Ainda há muito para andar nessa nossa “américa baixa”. E as gentes da Venezuela seguem apontando na direção de um mundo melhor.