Resposta colhida através de correio eletrônico do CIMI – Conselho Indigenista Missionário – Equipe Florianópolis
DIREITO DE RESPOSTA
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Neste mês, o jornal Diário Catarinense veiculou uma série de reportagens intitulada “Terra Contestada”, cujo tema principal foi o processo de demarcação da Terra Indígena de Morro dos Cavalos.
Contudo, na edição de domingo, dia 10 de agosto de 2014, foi veiculada reportagem sobre a Terra Indígena Xapecó, localizada nos municípios de Entre Rios e Ipuaçú, intitulada “UM EXEMPLO DE VIDA DIGNA PELA AUTONOMIA”.
Em que pese os louváveis propósitos do jornal, ao retratar a situação de uma das terras indígenas do Oeste de Santa Catarina – fato inédito nos maiores veículos de comunicação do estado –, a reportagem chama a atenção pela desinformação, equívocos e parcialidade de quase tudo o que foi noticiado.
A impressão que se tem é que a comunidade indígena é utilizada apenas como pano de fundo – e distorcido –, em uma tentativa de total desqualificação do trabalho desenvolvido pela FUNAI, especialmente na identificação e demarcação de terras indígenas.
Os equívocos e a desinformação vão desde erros grosseiros sobre a população da TI Xapecó – dados oficiais, corroborados em recente levantamento realizado para o pleito de escolha do novo cacique, mostram que aquela comunidade é formada por 5.414 indígenas –, chegando até à total omissão dos problemas gravíssimos enfrentados pelo povo Kaingang de Ipuaçú e Entre Rios, infelizmente ainda muito longe de ser considerado um modelo de “desenvolvimento”, especialmente na acepção adotada pela reportagem, de mero acúmulo individual de bens materiais.
A reportagem omite – ou está desinformada – que a escola indígena Cacique Vahnkre, que possui o ginásio de esportes em formato de tatu e o prédio inspirado em um casco de tartaruga mencionado pelo jornal, foi interditada por cerca de 70 dias pela Vigilância Sanitária, após inspeção realizada pelo Ministério Público Federal ter identificado as precárias condições de conservação daquela escola, inclusive com relação à merenda escolar. O ginásio continua interditado até hoje, pois suas péssimas condições colocam em risco a segurança dos estudantes.
Na mesma inspeção, o Ministério Público Federal constatou graves problemas de conservação e manutenção também dos ônibus que realizam o transporte escolar dos estudantes.
Na área da educação, a Terra Indígena Xapecó também ostenta um triste título: nela estão localizadas as escolas que apresentam os dois piores Índices de Desempenho da Educação Básica – IDEB do estado de Santa Catarina.
Recente inspeção realizada naquela terra tradicional também revelou as precárias condições das unidades de saúde lá existentes.
Cabe esclarecer que a responsabilidade direta pela oferta dos serviços de saúde e educação em áreas indígenas está a cargo da União, Estado e Municípios, e não da FUNAI.
Cumpre destacar, também, que problemas envolvendo unidades de saúde e educação infelizmente são frequentes em nosso país, especialmente em comunidades da área rural. Contudo, esses problemas se potencializam, em muito, no caso das comunidades indígenas de Santa Catarina, em virtude do descaso do Poder Público, do desconhecimento e da incompreensão da sociedade – e de muitos veículos de comunicação – em relação à questão indígena e também – é preciso que se diga – pela omissão de algumas lideranças indígenas, muitas vezes mais preocupadas em defender seus próprios interesses pessoais e financeiros e não aqueles da sua comunidade. Aliás, comportamento que lembra o de muitos de nossos mandatários.
Em relação à noticiada instalação de uma Pequena Central Hidrelétrica – PCH na Terra Indígena, necessário informar que existe óbice constitucional à implementação desses empreendimentos – e também à exploração de recursos minerais do subsolo – em terras tradicionais indígenas (art. 231, §§ 3º e 6º). Nesse sentido, o Ministério Público Federal em Xapecó expediu recomendação ao IBAMA, à FATMA e à FUNAI para que se abstenham de licenciar ou praticar qualquer ato relacionado ao licenciamento de empreendimentos dessa natureza, enquanto não seja promulgada lei complementar tratando da exploração das riquezas naturais existentes nas terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas do Oeste catarinense. As informações encaminhadas pela FATMA dão conta de que todos os procedimentos de licenciamento desses empreendimentos em áreas indígenas estão suspensos.
Com relação à plantação de soja na TI Xapecó, isso ocorre por meio das denominadas “parcerias” firmadas por parcela dos indígenas com agricultores da região, fato que está sendo apurado pelo Ministério Público Federal, diante de denúncias de apropriação dos resultados dessa atividade por pequenos grupos, inclusive por pessoas que não integram o povo Kaingang da TI Xapecó. Importante esclarecer, contudo, que tais fatos – além de outros, como a saída de centenas de indígenas para trabalhar em agroindústrias da região – decorrem da total inexistência, por parte do Poder Público, de uma alternativa de desenvolvimento sustentável para essas comunidades. Situação, diga-se, até pior do que aquela enfrentada pelos assentados pela Reforma Agrária, que, após serem fixados em determinada área, também são lançados à própria sorte, mas aos menos recebem alguns parcos recursos, como o crédito instalação, por exemplo.
Sobre esse ponto, deveríamos ainda nos indagar se desejamos que as terras indígenas de nosso país sejam transformadas em grandes “fazendas de soja”, desmatando florestas, comprometendo os recursos hídricos, contaminando os mananciais de água com agrotóxicos. A situação atualmente enfrentada pelos habitantes da capital paulista, ao menos nos parece, deveria servir de alerta com relação ao resultado para o qual o nosso atual modelo de “desenvolvimento econômico” está nos levando. O respeito à diversidade, a valorização do pluralismo, da multiplicidade cultural de nosso país, a proteção às nossas comunidades tradicionais pode ser uma alternativa que nos possibilite buscar um novo caminho, um novo modelo, conforme almejado e positivado pelo Constituinte de 1988.
Por fim, impossível não externar a perplexidade com a reportagem no que tange ao descumprimento de regras comezinhas da redação dos veículos de comunicação, que recomendam que se colha o ponto de vista das demais partes envolvidas em qualquer fato. Nesse sentido, realmente causa espécie que não tenham sido consultadas a FUNAI – que, em que pese suas evidentes deficiências estruturais, continua sim atuando na Terra Indígena Xapecó – e o Ministério Público Federal, instituição à qual, por mandamento constitucional, incumbe, entre outras, a proteção dos interesses sociais, difusos e coletivos e a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas.
Nesse mister, a Procuradoria da República em Chapecó tem dezenas de inquéritos civis instaurados, ações civis públicas ajuizadas e recomendações expedidas em relação a cada um dos temas acima abordados – e muitos outros –, e que poderiam ser pormenorizadamente apresentados, caso houvesse sido contatada pela reportagem.
Como afirmado por um dos ilustres entrevistados pelas reportagens do Grupo RBS sobre esse tema, autor de notável obra sobre o direito à liberdade de expressão e o chamado hate speech, certamente “o remédio contra o ódio não é o silêncio forçado, mas mais liberdade”. Contudo, se de um lado a Constituição garante a liberdade de expressão, um dos valores supremos de uma verdadeira democracia, também ela assegura o direito à devida e correta informação, a outra face de uma mesma moeda, que, neste caso, restou esquecida.
Imagem tomada do http://www.caciquevanhkre.rct-sc.br/, com alunos da 4ª série e professores da Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkre em entrevista com o Sr. Vicente Fokáj.