Por Débora Prado.
No dia 29 de agosto é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. A data, criada no I Seminário Nacional de Lésbicas (Senale) em 1996, é um marco temporal importante para lembrar a luta de milhares de mulheres que têm seus direitos violados pela conjugação de preconceitos históricos no Brasil.
De acordo com a fisioterapeuta e ativista Karen Lucia Borges Queiroz, da Associação Lésbica Feminista Coturno de Vênus, de Brasília, nesta data é preciso lembrar que, assim como acontece com mulheres héteros, é no ambiente doméstico e nas relações íntimas que acontece boa parte da violência contra mulheres lésbicas.
A Lei Maria da Penha, porém, ainda é pouco aplicada, sobretudo por conta do desconhecimento generalizado dessa possibilidade – inclusive pelas próprias vítimas de violência e pelos profissionais de Segurança e Justiça.
A associação, em 2006, coordenou por um ano as atividades de um Centro de Referência no Distrito Federal que recebia denúncias de agressão contra pessoas LGBT e de mulheres vítimas de violência doméstica, independentemente da sua prática sexual.
“A Lei Maria da Penha é uma lei incrível, que oferece todo um apoio específico às mulheres lésbicas que sofrem violência conjugal ou por membros da família, mas que ainda é pouco aplicada”, frisa a ativista.
“As relações entre mulheres, infelizmente, ainda reproduzem, muitas vezes, um modelo heterossexual em que há um homem que domina e uma mulher que é dominada. Também dentro de casa há toda uma opressão, um controle dos pais e familiares em cima da sexualidade da filha. Se essa mulher for adolescente e depender financeiramente, é ainda pior”, complementa.
Confira a entrevista:
Que demandas na agenda das mulheres lésbicas precisam de mais visibilidade atualmente no Brasil?
Particularmente, considero que uma das principais demandas é dar visibilidade às legislações já existentes. Por exemplo, a Lei Maria da Penha é uma lei incrível, que oferece todo um apoio específico às mulheres lésbicas que sofrem violência conjugal ou por membros da família, mas que ainda é pouco aplicada nesses casos.
Na Coturno de Vênus fizemos uma pesquisa há dois anos que revelou que a maioria das pessoas, inclusive as mulheres lésbicas, não sabiam que a Lei Maria da Penha tinha essa abrangência e que podia ser usada para casos de violência sofrida dentro de casa. Então, uma questão fundamental é dar visibilidade às legislações hoje vigentes.
Outra questão é a educação; é preciso mudar esse modelo de educação heteronormativa, baseada em uma heterossexualidade compulsória. Quanto antes trabalharmos com crianças e adolescentes questões como a ruptura de preconceitos e dessa norma tão violenta e já mostrarmos a homossexualidade feminina como algo natural e normal, mais avanços vamos conseguir.
Há também a questão da saúde. A realidade da saúde ainda não mudou, mas houve mudança na compreensão de certos governantes sobre o tema, e o próprio Ministério Saúde está tendo uma preocupação maior sobre a demanda de prevenção de sexo seguro entre mulheres lésbicas. Acho que um grande desafio no horizonte é transformar isso em uma realidade prática nos atendimentos cotidianos dessa população.
No caso da Lei Maria da Penha, como a violência doméstica e familiar atinge o direito das lésbicas a uma vida livre de violência?
Tanto as relações entre lésbicas quanto as intrafamiliares são baseadas em modelos de poder, em uma estrutura hierárquica. As relações entre mulheres, infelizmente, ainda reproduzem, muitas vezes, um modelo heterossexual em que há um homem que domina e uma mulher que é dominada. Mesmo em uma relação entre mulheres, em que não deveria existir essa hierarquização, esses papéis sociais existem.
Também dentro de casa há toda uma opressão, um controle dos pais e familiares em cima da sexualidade da filha. Se essa mulher for adolescente e depender financeiramente, é ainda pior.
Nesse sentido, acontecem muitos casos de violência psicológica?
Com certeza.
O simples fato de o pai ou a mãe privar aquela criança ou adolescente de sair, usando como justificativa a homossexualidade, é uma forma de violência psicológica, conforme aponta a Lei Maria da Penha, que pode até chegar a uma situação de cárcere privado.
E esta é uma realidade muito presente na vida das adolescentes e, às vezes, até de mulheres lésbicas adultas. Não é só a violência física, mas as brigas, confiscar celular, não permitir que a filha saia da casa – tudo isso é violência doméstica contra a mulher, sob a forma de uma violência psicológica muito grande.
Essa aplicação inclui as mulheres transexuais?
Sim. A Lei Maria da Penha tem a abordagem de uma ação afirmativa de equidade de gênero e de apoio a essa classe mais submissa nos parâmetros da sociedade. Uma mulher trans, que tem sua vivência como mulher, certamente é estigmatizada e colocada dentro dos padrões do que é ser mulher – sem falar de outros preconceitos.
Que barreiras as mulheres lésbicas sofrem para ter acesso à Justiça?
Há um desconhecimento muito grande sobre a aplicação da Lei para as mulheres lésbicas e os profissionais que trabalham nos equipamentos específicos de violência contra as mulheres, muitas vezes, não têm sensibilidade para tratar dos casos dentro da Lei Maria da Penha.
Quando estávamos atuando no Centro de Referência, em 2006, recebíamos muitos casos de violência e encaminhávamos para os órgãos responsáveis. Na maior parte das vezes, os atendentes desses órgãos tinham uma grande dificuldade em aplicar a Lei Maria da Penha. Acabavam caracterizando como outra coisa, como intriga entre família, por exemplo, e nós tínhamos que acompanhar essa mulher novamente à Delegacia da Mulher para conseguir dar continuidade à denúncia sob a Lei Maria da Penha.
E isso ainda existe, sabemos de casos em que se tenta aplicar a Lei e há uma grande resistência dos profissionais em fazer o boletim de ocorrência.
Como isso pode mudar?
Minimamente, é preciso haver uma capacitação específica com o recorte da homossexualidade feminina. Muitas vezes se reproduz o mito de que a Lei Maria da Penha só serve para mulheres hétero e está vinculada a brigas de âmbito conjugal. Mesmo nas divulgações dos órgãos públicos, se dá pouquíssima visibilidade para a aplicação da Lei na defesa das mulheres lésbicas.
Então, apesar de uma parte da Lei falar explicitamente em orientação sexual – o que foi um avanço incrível e que faz toda a diferença na vida dessas mulheres – acho que o governo falha, talvez até por medo, em dar visibilidade a isso, porque imagina a demanda que vai existir se todas as lésbicas que se sentem acuadas e violentadas dentro de casa exigirem seus direitos.
Hoje em dia, é possível mensurar se as mulheres lésbicas sofrem mais violência em casa ou nas ruas?
A violência acontece tanto na rua quanto em casa. Podemos pensar que, dentro de casa, a mulher acaba sofrendo mais porque é uma violência frequente e cotidiana, diferente da rua, onde nem sempre as lésbicas estão empoderadas para andar de mãos dadas, dar um beijo, ficar à vontade mesmo.
Então, de certa forma, dentro de casa a violência está mais presente no dia a dia, mas é banalizada, naturalizada. Muitas vezes, as próprias mulheres não veem como violência a situação que estão enfrentando por serem acostumadas a viver em um ambiente de submissão. E, nesse contexto, a Lei Maria da Penha é um instrumento poderoso que precisa ser divulgado.
Então, o governo precisa dar mais visibilidade, fazer campanhas, propagandas no rádio e televisão, para explicar que a Lei Maria da Penha se aplica no caso da violência contra as mulheres lésbicas, entre casais e por outros membros da família dentro de casa.
Fonte: Agência Patrícia Galvão