“Mesmo com toda a dificuldade e problemas, o Ministério da Saúde poderia pelo menos ter estruturado os DSEI’s (Distritos Especiais de Saúde Indígena), ou solicitado o concurso para o setor. Evidente que sem profissionais qualificados nos distritos não há como seguir a lei de licitações ou usar justificativas de que as regras da administração pública não se aplicam a realidade indígena”, destaca fonte do governo federal consultada pelo Cimi.
O concurso seria um mecanismo de qualificar o setor, diz a fonte. “Simplesmente não há interesse em fazer concurso público, pois é mais vantajoso sucatear o setor e terceirizar os serviços. Qual a justificativa para não se fazer concurso para essas áreas? Contratar ou não um pregoeiro, um administrador para atuar na sede destes distritos não implica em questões culturais indígenas ou em qualquer outra justificativa vazia que o governo use”.
Nas aldeias a situação estoura em mortes prematuras, muitas vezes por doenças de fácil tratamento. Além de não ter a assistência devida nos distritos, os agentes sanitários e de saúde indígenas, via de regra, não são submetidos ao processo de capacitação e tampouco a medicina tradicional é absorvida pelo sistema diferenciado de saúde indígena. Para enfermidades que tipicamente os povos chamam de “doença do branco”, e na maioria das vezes não conseguem a cura por tratamento próprio, os agentes não possuem medicamentos.
Enterrados no barranco
Entre janeiro e novembro de 2013, conforme dados da Sesai apresentados pelo Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas, do Cimi, 693 crianças indígenas de 0 a 5 anos morreram no país. A cada 100 indígenas mortos, 40 são crianças.
Diarreia e vômito, moléstias que matam dezenas de crianças, são no geral causadas pela falta de saneamento básico. Sobretudo em aldeias forçadas, pelo processo colonizador, a se deslocar do interior da floresta para as margens dos rios. Na frente de uma cova rasa onde foi enterrada uma criança de seu povo, às margens do Rio Envira, no Acre, Warenco Ashaninka (na foto) comenta a situação: “Nem sempre tem água boa. O rio enche também e toma as cacimbas. Então as crianças ficam com diarreia, vômito, febre”.
O indígena explica que o jeito é levar o enfermo para posto da Sesai, no caso do Envira localizado no município de Feijó. Das aldeias do povo Ashaninka da parte alta do rio, já perto da fronteira com o Peru, a viagem de barco pode durar de cinco a oito dias indo de bubuia, ou seja, apenas com a força da correnteza. O trajeto é cumprido debaixo do sol quente ou das tempestades comuns ao bioma amazônico. No caso dos doentes mais vulneráveis e graves, o percurso torna-se a sentença de morte.
“Meu pai morreu assim. Depois para subir de volta à aldeia leva mais tempo, porque é contra a correnteza. Corpo começou a cheirar mal. Tivemos que enterrar num barranco. Isso me dói muito, porque meu pai não é cachorro. Depois o rio engoliu o barranco e levou o corpo do meu pai. Isso dói, viu”, conta Txate Ashaninka. Em algumas ocasiões, os ashaninka relatam que tiveram de enterrar em “barranco do branco” e sofreram represálias, além do túmulo improvisado acabar violado.
O DSEI local não possui embarcação rápida, as chamadas voadeiras, para atender as emergências. Muito menos uma base avançada no Envira. Quando faz a visita periódica às comunidades, composta ainda pelos madja e huni kui, a equipe de saúde precisa alugar um batelão, embarcação de maior porte e que possibilita a locomoção da estrutura de atendimento. “Muitos parentes vão para Feijó atrás de assistência e não conseguem. Digo que não é nem por causa dos funcionários que estão lá, mas porque eles não tem com o que trabalhar. Eu pergunto, porque isso a gente pelo menos pode: para onde vai o dinheiro?”, diz Txate.
Falta de regras e condutas
Falta de regras para a remoção de servidores também é apontada pela fonte do governo federal consultada pelo Cimi como ponto omisso nos argumentos dos gestores da saúde indígena. O resultado é que em locais mais afastados a permanência dos profissionais torna-se pouco provável. Falta de remuneração, estrutura e critérios de remoção influenciam de forma incisiva.
A problemática remonta o concurso do DSEI Yanomami, em Roraima, realizado em 1996, base dos argumentos governistas para a não realização do concurso público. “Talvez os argumentos sirvam para convencer quem nunca ouviu falar em administração pública”, afirma a fonte. A remuneração para médicos, à época, era de R$ 500,00. São valores de quase 20 anos atrás, mas “já eram extremamente defasados. Não se contrata profissionais para áreas remotas oferecendo um salário baixo. Qualquer gestor sabe disso. Então esse concurso não pode ser tomado como referência”.
Sinais de ingerência e descontrole social, tal como confirma a fonte. “Argumentam que os profissionais (DSEI Yanomami) ficaram um tempo e depois se removeram. Como assim? Quem autorizou a remoção desses servidores? Por que não chamaram os próximos aprovados nos casos de vagas em aberto?”, questiona.
Relacionando a situação com outros serviços federais aplicados em regiões afastadas dos grandes centros, a fonte define que seria a mesma coisa caso a Polícia Federal de repente fizesse um convênio com ONG’s para contratar policias em áreas de fronteira, ou se a Justiça Federal abrisse concurso para juízes oferecendo salários de R$ 2 mil ou se essa mesma Justiça ficasse sem oficiais de justiça em municípios como Barcelos (AM) e Xapuri (AC) porque simplesmente pediram remoção e foram embora.
“Nunca o governo federal pensou em solucionar a questão na saúde indígena tal como outros órgãos fizeram. Se o problema é salário, é preciso ter uma remuneração compatível. Se o problema é fixação de profissionais, é preciso ter regras de movimentação interna. No Judiciário o servidor só consegue remoção quando há alguém pronto para assumir a vaga”, destaca a fonte.
O governo federal, pontua, “nunca formulou” propostas para alterar a legislação de forma a acomodar as especificidades da saúde indígena. “É fácil dizer que o concurso público não se aplica a saúde indígena com base em argumentos descontextualizados. Nunca houve interesse por parte do governo de estruturar o setor. Houve o estudo para a criação da Sesai, em 2008 e 2009, mas não foi estudado quantos profissionais precisaria, em quais lugares, o que deveria mudar na legislação”.
Por fim, a fonte reitera que o instituto não tem como foco a saúde indígena, mas apenas busca uma saída administrativa ao processo judicial impetrado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público Federal (MPF), que exige a realização do concurso público para a saúde indígena e já foi repactuado três vezes pela Sesai. Além disso, terceirizar o serviço com a conquista de mais de 300 cargos de confiança ao Ministério do Planejamento e outros 65 para a Sesai.
Foto: Reprodução/CIMI
Fonte: CIMI