Por Camila Moraes. É estranho pensar que, em um mundo globalizado e sem fronteiras, como se diz o de hoje, a oferta de livros de reconhecidos escritores latino-americanos seja menor do que tempos atrás.
Um dos maiores e mais ativos tradutores do castelhano ao português, o jornalista e escritor Eric Nepomuceno, é alguém que observa esse fluxo desde os anos 70, quando começou a traduzir as obras de “amigos” e “por afeto”. Segundo ele, já fomos muito mais conectados aos países vizinhos (geograficamente e culturalmente) no passado: “Ao que tudo indica, a referência [hoje] é a moda. E a moda, sabemos todos, passa”.
Na entrevista exclusiva a Opera Mundi, Eric Nepomuceno fala sobre o ofício de tradutor, literatura hispânica, mercado editorial e seus “amigos” latino-americanos. Leia os principais trechos:
Opera Mundi: Por que a literatura latino-americana circula tão pouco entre os diferentes países da América Latina, mesmo os que falam espanhol?
Eric Nepomuceno: Não creio que seja exatamente assim. Claro que o mundo dito globalizado, defendido pelos neoliberais mais radicais, é, na verdade, um mundo pausterizado. Lembro que há anos um escritor colombiano publicava no México, e a gente lia quase que em seguida no Chile, na Argentina, no Peru, na Venezuela. Aquilo sim era um mundo globalizado. Aí vieram os espanhóis e compraram essas editoras todas, e agora chegam os norte-americanos e os ingleses comprando os espanhóis que por sua vez compraram os latino-americanos, e pronto. A tal globalização acabou com a globalização. Ainda assim, me assombro, e para o bem, quando vejo amigos meus mexicanos editados na Argentina, ou amigos meus argentinos editados no México.
OM: Você identifica, aqui no Brasil, um maior interesse das editoras em publicar autores hispano-americanos? Ou vivemos no fluxo de sempre?
EN: Não sei dizer. Pode ser que a gente viva no fluxo de sempre. Acho que editores e olheiros dependem muito do que diz a imprensa dos demais países latino-americanos. Não me conformo de autores como o poeta Juan Gelman ou o romancista Héctor Tizón, argentinos os dois, e fico nos dois para não derramar exemplos, sejam ainda quase que totalmente desconhecidos no meu país. Ou que o romancista nicaraguense Sergio Ramírez tenha, ao que eu saiba, apenas um livro publicado aqui. Enfim, ainda falta o verdadeiro faro de editor aos editores brasileiros. O argentino Juan Forn, a chilena Alejandra Costamagna, o cubano Eduardo Heras León, o venezuelano Luis Britto García, cadê? Cadê? Ou vamos nos guiar apenas pelos modismos? E isso, que estou falando de contemporâneos meus… Imagine se fosse voltar atrás.
OM: E quais são, até onde você identifica, as ausências mais notáveis entre os nomes clássicos, que seria importante estarem aqui?
EN: Poderíamos começar, por exemplo, por um contista peruano chamado Julio Ramón Ribeyro, e a partir dele elaborar uma lista que daria trabalho de uns muitos anos aos editores brasileiros. Mas, ao que tudo indica, a referência é a moda. E a moda, sabemos todos, passa. Ribeyro seria uma espécie de paletó de veludo: nunca foi moda, mas jamais deixou de ser visto. Enfim…
OM: O que é mais importante no repertório e no trabalho de um tradutor, na sua opinião?
EN: Ah, são muitas coisas. Primeiro, conhecer bem o próprio idioma. Em segundo lugar, mas tão importante quanto, conhecer bem o idioma do qual pretende traduzir. E aí, no caso específico do idioma castelhano, ter noções bastante claras e sólidas das culturas de cada país, de cada região. O humor, por exemplo, de um chileno é muito diferente do de um guatemalteco. São outros pontos de referência, é outro tudo. É muito complicado. Lembro de uma vez ter ouvido de um tradutor a saída genial que ele teve para traduzir ‘tripas a la romana’ ou coisa parecida. Veneziana, talvez. Pois o tal tradutor lembrou de ‘callos a la madrileña’, que vem a ser a nossa dobradinha, e sapecou no texto. Bom: ou ele nunca comeu callos, que efetivamente são as nossas dobradinhas, ou nunca soube o que são ‘tripas a la romana’. O que muda? Talvez pouco. Talvez tudo. Assim são as coisas…
OM: Há alguma história interessante, do seu trabalho de tradutor junto a algum autor hispânico, que você possa relatar?
EN: O único autor que traduzo e com quem tenho um contato direto e permanente enquanto traduzo é Eduardo Galeano. Já lá se vão, sei lá, uns 15 livros, e o primeiro vem de 1976. E faço isso por duas e exclusivas razões. Primeiro, porque ele conhece perfeitamente bem o português. E segundo, porque ele é meu irmão mais velho. E, ao contrário do que acham meus irmãos de sangue mais novos, eu continuo achando que respeitar irmão mais velho é mandamento divino.
OM: Você traduziu para o português obras de vários autores que figuram entre os mais importantes escritores hispano-americanos publicados no Brasil. Como começa a sua relação com a literatura em espanhol?
EN: Começou muito por acaso. Lá por 1966, 67, eu ia frequentemente a Montevidéu com meu pai. E via nas livrarias nomes que desconhecia: Horacio Quiroga, Juan Carlos Onetti, Mario Benedetti, além dos estrangeiros como Borges, Rulfo, Cortázar. Comecei a ler e a gostar. Em 1973, quando fui embora do Brasil sabendo que ia levar um longo tempo até voltar, comecei a traduzir por afeto. Ou seja: eu queria que os amigos que deixei aqui soubessem quais os amigos que fiz por lá, quais os autores que ia descobrindo. Por isso digo e redigo que não sou tradutor: sou um escritor que traduz o que gosta: os amigos e um ou outro livro que me instiga. Meu ofício é outro: escrever. E, nesse ofício, muitas vezes escrevo no meu idioma o que amigos escreveram no idioma deles.
OM: Como é a dinâmica de escolha dos autores e das obras no seu trabalho?
EN: Não costumo atender a convites, e são vários. Costumo escolher, indicar, recomendar, e aí esperar para ver o que acontece. Exemplo: comecei, há anos, lá por 2008, a ler um livro do Sérgio Ramírez, escritor reconhecido, sobre a Revolução Sandinista. Ele tinha ganhado, com outro livro, um prêmio Alfaguara, um dos mais importantes do idioma espanhol. Por uma questão óbvia, recomendei à Alfaguara brasileira, um selo da então Objetiva. Depois de quatro meses sem resposta alguma, o que me pareceu uma ofensa não apenas ao meu bom amigo mas ao próprio prêmio que levava o nome da editora, comecei a tradução, que entreguei à minha editora, a Record. Tem de tudo nesse mundo, como sabemos todos. Em geral, há autores que traduzo normalmente – Galeano, García Márquez – e aí o entendimento já fica quase que pré-estabelecido. Mas se quero traduzir alguém, sugiro aos editores, e vamos ver o que acontece. Encomendas, repito, foram raríssimas.
OM: Qual é a influência, a seu ver, têm os tradutores na circulação de literatura hispano-americana no Brasil?
EN: Ora, uma importância capital. E não só da literatura hispano-americana. Eu, por exemplo, não leio nem russo, nem japonês, leio muito mal-e-mal italiano, e vamos parar por aqui. Já imaginou o que eu teria perdido, se não fossem as traduções — e não só ao português, mas a outros idiomas onde leio com certo conforto?
OM: Você tem algum projeto em andamento?
EN: Nunca tenho um projeto em andamento. Tenho sempre vários. Termino a nova tradução de ‘Rayuela’, de Cortázar, traduzo livros infanto-juvenis – e atenção com o preconceito: são livros formidáveis!! – de meus irmãos, o argentino Mempo Giardinelli e o mexicano Juan Villoro, avanço no meu livro de perfis, cuido de uma nova coletânea de contos, e por aí a vida segue.
Foto: Reprodução/Opera Mundi
Fonte: Opera Mundi