Por Clarissa Peixoto
“As desigualdades de gênero refletem em muitas formas de violência contra as mulheres. Em pleno século XXI, ainda vivemos uma situação em que a mulher não é dona do próprio corpo”. As palavras são da presidenta do Conselho Municipal de Diretos da Mulher (Comdim) de Florianópolis, Kelly Vieira e sintetizam a condição das mulheres brasileiras na atualidade.
Embora haja avanços, como a sanção da Lei Maria da Penha (n. 11.340) em 2006, que prevê punição para agressores, a violência contra mulheres e meninas ainda é um problema de grande proporção. Dados do mapa da violência 2014 demonstram que, nas últimas três décadas, o número de homicídios dolosos de mulheres cresceu 111%. Quando tratamos do recorte geracional, a situação é mais grave. No Brasil, a cada quatro horas uma mulher com menos de 30 anos é assassinada.
Um estudo mais detalhado desses dados nos mostra que a violência contra a mulher, mesmo sendo um problema que perpassa todas as classes sociais, tende a se aprofundar em medida da vulnerabilidade em que estão submetidos determinados grupos. Segundo informações do Repositório do Conhecimento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)1, no mundo do trabalho, uma mulher negra pode receber até 60% menos que um homem branco. Essa é também uma forma de violência de gênero e preconceito racial.
Para as mulheres LBT (lésbicas, bissexuais e transexuais), a chamada LBTfobia – sentimento de ódio por mulheres que visibilizam uma orientação sexual diferente dos padrões heteronormativos – tem mostrado que a agressão obedece uma escala de ódio e preconceito.
De acordo com Kelly, a agressão física, que muitas vezes leva a morte, é a forma mais visível da violência, mas não é a única. “Há muitas formas de agressão, como a violência psicológica que destrói a autoestima ou mesmo a violência institucional, que constrói socialmente estereótipos sobre a mulher”, aponta.
Estrutura estatal para enfrentar a violência
Para Kelly, o enfrentamento à violência contra mulheres tem que ser encarado como uma responsabilidade do estado. “É necessário que se criem estruturas integradas, que não somente sejam punitivas, mas que deem a essa mulher segurança para denunciar e perspectivas para evitar a revitimização”, reforça.
Em Florianópolis, a estrutura para o atendimento à vítima de violência ainda encontra lacunas. Embora haja um empenho do movimento de mulheres na reivindicação e elaboração de propostas, o sistema de atendimento ainda não comporta todas as condições necessárias para o acolhimento integral de mulheres vítimas da violência.
O município dispõe do Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CREMV), no bairro Agronômica. O CREMV faz o acolhimento da mulher vítima de violência, com atendimento de psicólogos e assistentes sociais, além da orientação jurídica, quando é do desejo da mulher. Em Santa Catarina, apenas dois municípios contam com essa estrutura. Além de Florianópolis, há um centro também em Dionísio Cerqueira. As Casas Abrigo são apenas três, nas cidades de Joinville, Blumenau e Criciúma. Ainda pesa sobre Santa Catarina a dificuldade em obter dados sobre a violência de gênero, o que diminui a possibilidade de propor medidas condizentes com a realidade das mulheres.
O ideal é que os municípios disponham de estruturas mais definitivas, como a casa abrigo, local que atende de forma integral a mulher, com estrutura para receber crianças e segurança para as vítimas. “O Estado precisa se ocupar em garantir à mulher condições de mudar a sua própria condição. Isso é o que chamamos equidade. Pensar especificamente a mulher não é isolá-la, mas dar condições àquelas que ao longo da história foram discriminadas e relegadas à vida privada”, ressalta Clair Castilhos, secretária executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.
Origens da opressão de gênero
Para enfrentar esse problema, é necessário entender como o preconceito se constitui a partir das relações de poder. Friedrich Engels, pensador marxista, autor da obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, aponta que a primeira opressão de classe é aquela que determinou os papéis sociais de homens e mulheres. “O primeiro antagonismo de classe que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, ela abre, ao lado da escravatura e da propriedade privada, a época que dura ainda hoje, onde cada passo para frente é ao mesmo tempo um relativo passo atrás, o bem-estar e o progresso de uns se realizam através da infelicidade e do recalcamento de outros”2. Engels permanece atual para explicar a opressão de gênero que coloca à margem da sociedade mulheres e meninas.
Segundo Clair Castilhos, a origem da opressão às mulheres está relacionada ao pensamento patriarcal dominante em nossa sociedade. “O patriarcado, expressão usada para definir uma visão de mundo calcada no masculino, sempre coloca a mulher como um complemento do homem. Esse pensamento dá origem aos preconceitos e discriminações, validados pelas diferentes culturas, ciências e religiões em todos os tempos. Ligado fortemente ao conceito de propriedade privada, a mulher foi considerada também enquanto objeto de posse”, explica.
Denuncie a violência doméstica
A Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) oferece um serviço chamado Central de Atendimento à Mulher: Ligue 180, com o objetivo de receber denúncias ou relatos de violência, reclamações sobre os serviços da rede e de orientar as mulheres sobre seus direitos e sobre a legislação vigente, encaminhando-as para outros serviços quando necessário (fonte: Observatório de Gênero).
Notas
1O Perfil da Discriminação no Mercado de Trabalho: Homens Negros, Mulheres Brancas e Mulheres Negras, de Sergei Suarez Dillon Soares. Disponível em <http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2295/1/TD_769.pdf>
2A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Frederich Engels.
Foto: Marcela Cornelli