A desconstrução midiática do SUS

Por Samuel Lima. *

SUS

95% dos transplantes feito no Brasil são bancados pelo SUS; campanhas de vacinação são 100% realizadas com recursos públicos, há décadas; 85% de todos os procedimentos de alta complexidade, nacionalmente, são feitos pela saúde pública; 2,2 milhões de cirurgias eletivas (sem urgência) são realizados e por aí afora. É importante destacar ainda que somos um dos poucos países do mundo que têm um sistema público e gratuito de saúde.

O texto constitucional, aprovado em 1988, contempla o princípio maior: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (Art. 196 da Constituição Federal)”. Nascia ali, há exatos 26 anos o maior sistema público de saúde do mundo – o Sistema Único de Saúde (SUS).

No artigo 198, o legislador instituiu três diretrizes que orientariam as ações e serviços públicos de saúde, que seriam oferecidos através de uma rede regionalizada e hierarquizada: (a) descentralização, com direção única em cada esfera de governo; (b) atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; (c) participação da comunidade.

Faço essa referência histórica para refletir sobre a cobertura a que vem sendo submetido o SUS, via mídia corporativa. A meu juízo, salvo raríssimas e honrosas exceções, de uma sistemática forma de desconstrução do conceito e das conquistas que não pertencem a este ou aquele governante, mas de um conjunto de entidades sindicais e associativas, profissionais da saúde pública (gestores, corpo médico e técnico), voluntários, conselhos de saúde (usuários) atuantes, dentre outros atores que é impossível nominar neste breve texto.

Na semana que passou voltei a observar isso em três reportagens distintas, veiculadas através da televisão aberta e de jornais impressos. Comecemos por uma notícia de alta relevância social, que foi pauta na mídia dia 07/08/2014: o Ministério da Saúde lançou a campanha nacional de amamentação, cujo objetivo é incentivar as mães a amamentarem seus bebês até os dois anos e, de forma exclusiva até os seis meses de vida. Focada na ideia de que essa prática é “um ganho para a vida toda”, o investimento inicial da política pública, considerando o ano de 2013, chega aos R$ 8,5 milhões (Veja mais: http://migre.me/kXhSZ).

O que é estranho, em todas as notícias que li sobre esse assunto: em momento algum há qualquer menção ao SUS. Esse tipo de política pública é uma das maiores contribuições do Sistema Único à sociedade, bem como as campanhas de vacinação de todos os tipos, 100% bancadas com recursos públicos. Vamos adiante, observar o paradoxo mais de perto, em outras duas notícias nos telejornais e portais na internet.

Na mesma linha, a cobertura sobre um fato inusitado também serviu ao mesmo propósito: omitir e tornar invisível a ação das políticas públicas de saúde. A notícia de um auspicioso duplo transplante de órgãos, realizado em Recife no final de julho (e noticiado na quarta, 06/08) também foi descrita nos telejornais sem nenhuma menção ao SUS. No Jornal Hoje (TV Globo), por exemplo, o texto noticioso ignora solenemente que os recursos para esse tipo de procedimento (transplantes, em geral) são feitos pelo SUS. Observem o enunciado: “Após 15 horas de cirurgia, as vidas de Andrea Cavalcanti, de 44 anos, e Horácio Calil, 64, mudaram significativamente. É que os dois passaram por um transplante de fígado por meio da técnica “dominó”, também conhecida como “repique”, em que dois transplantes são realizados simultaneamente. A cirurgia foi feita no Recife no dia 29 de julho e, nesta quarta (6), os dois receberam alta do Hospital Jayme da Fonte, na Zona Norte da cidade”.

O curioso é que no Portal G1 (da mesma rede) encontrei a referência completa, ainda que no final do texto, como último tópico na hierarquia da informação: “Desde 1999, quando a unidade começou a funcionar, foram feitos 845 transplantes de fígado no estado, a maioria deles no hospital Jayme da Fonte, seguido pelo Imip. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde (SES), do total de 661 transplantes realizados em Pernambuco até junho deste ano, 64 deles foram de fígado. No ano passado, no mesmo período, foram realizadas 60 cirurgias do tipo. O procedimento é todo pago pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e os hospitais Jayme da Fonte, Imip e Oswaldo Cruz estão habilitados para o procedimento. Atualmente, 91 pessoas aguardam na fila de espera por um fígado” (Leia a íntegra: http://migre.me/kXlmV).

No outro caso, o SUS é citado negativamente pelo fato de não oferecer o procedimento. A notícia agora é de equipamento testado em Salvador (BA) que pode mudar a vida dos pacientes com câncer de mama (Jornal Hoje, TV Globo, ed. 07/08/2014). No enunciado, a apresentadora resume: “O resultado de um mês e meio de radioterapia pode ser obtido em apenas 20 minutos” (Assista ao vídeo: http://migre.me/kXlK1). No fechamento da reportagem, os jornalistas Evaristo Costa e Sandra Annenberg (âncoras) enfatizam: “É importante reforçar: esse tratamento ainda é experimental, ainda está sendo testado e não está sendo feito pelo SUS (ele)// O pedido ainda está sendo analisado pela Secretaria Estadual de Saúde do Estado da Bahia (ela)”.

É notório esse viés sistemático de desconstrução do SUS. Não é exatamente uma novidade, mas nem sempre o distinto público consegue perceber a sutileza. No imaginário da sociedade, o conceito da saúde pública está sempre associado ao caos das emergências, filas intermináveis para exames e outras deficiências que indicam mais problemas de gestão (nas três esferas: federal, estadual e municipal) do que necessariamente recursos financeiros disponíveis.

Há quatro anos eu e minha família lutamos pela vida da minha filha (hoje com 18 anos), que foi diagnosticada com Leucemia Mieloide Aguda (LMA, do Tipo M2), e realiza tratamento no Hospital Infantil Joana de Gusmão (100% SUS), em Florianópolis (SC). A instituição atende crianças de todo o estado e realiza notável trabalho na área de oncopediatria e outras especialidades. A excelência do tratamento que qualquer família, independente de sua origem social, ali encontra talvez nunca venha a ser pauta dos meios de comunicação.

Esse é o ponto central: ao dar visibilidade apenas aos problemas, sem abordá-los com profundidade e sempre explorado o lado do espetáculo, a mídia presta um relevante desserviço à sociedade e à saúde pública. Se essa lógica fosse invertida, buscando-se o equilíbrio entre noticiar as deficiências e cobrir os casos de sucesso, o resultado final certamente seria outro. Os dados para tanto estão disponíveis no Sistema DataSUS. Alguns exemplos: 95% dos transplantes feito no Brasil são bancados pelo SUS; campanhas de vacinação são 100% realizadas com recursos públicos, há décadas; 85% de todos os procedimentos de alta complexidade, nacionalmente, são feitos pela saúde pública; 2,2 milhões de cirurgias eletivas (sem urgência) são realizados e por aí afora. É importante destacar ainda que somos um dos poucos países do mundo que têm um sistema público e gratuito de saúde.

Ao colocar em evidência também os casos de sucesso do SUS, nivelando por cima o que deveria ser o resultado geral do Sistema Único de Saúde, a mídia contribuiria para a progressiva melhoria da saúde no País: seja estimulando os movimentos sociais que lutam pela excelência do atendimento no SUS, ou então pressionando autoridades e gestores na busca de um tratamento humanizado e de qualidade, como a sociedade merece.

* Jornalista, professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB). É pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (UFSC).

Fonte: Blog Manuel Dutra

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