Por Marsílea Gombata.
De Porto Príncipe
A cada dois dias, Florence Porissaint sai de seu precário barraco no acampamento de Icare, perto de Forte Nacional, em busca de água por Porto Príncipe. A caminhada de 40 minutos rende um balde cheio que suprirá as necessidades da neta e da filha, com quem vive, por pouco mais de um dia. O suplício por qual passa é parte da rotina da Florence e de outros 137 mil haitianos que ainda vivem em acampamentos depois de terem perdido suas casas no terremoto de 2010.
Quatro anos depois da tragédia que deixou 240 mil mortos e 1,5 milhão de desabrigados, a reconstrução do país e da vida daqueles que perderam suas casas é inexistente. A mobilização parece ter ficado na força tarefa inicial para o envio de ajuda humanitária e a remoção dos escombros. Um dos cartões postais do Haiti, o Palácio Presidencial foi demolido à espera de seu reerguimento. A Catedral Notre Dame continua com sua parte superior destruída. Pelo centro da cidade, casas e edifícios abalados pelo tremor permanecem arruinados, aumentando a sensação de abandono crônico e pobreza que imperam em Porto Príncipe.
“Pensávamos que ficaríamos aqui por um período curto, mas desde o terremoto ninguém do governo dá as caras”, conta Florence, que vive em um barraco de 2 metros quadrados com a filha e a neta. “Não temos água, não temos comida. Vivemos como animais”.
A mesma insegurança abate seus vizinhos. Em Icare, 500 pessoas se apertam em microbarracos construídos com chapas de zinco, plástico e pedaços de madeira. O espaço tomado pelo esgoto a céu aberto e pelo lixo acumulado na entrada competem com o conquistado por moradores locais que vendem frutas e comida no chão.
Precariamente improvisadas, as “casas” chegam a abrigar dez pessoas. Os moradores, que não têm acesso a energia elétrica ou saneamento básico, dificilmente fazem mais de uma refeição por dia. Não são raros os relatos de adultos e crianças que chegaram a ficar, inclusive, uma semana sem comer.
O improviso é parte do cotidiano. Para sobreviver e conseguir manter a moradia de 3 metros quadrados em que vive com a mulher e cinco filhos, Lindor Cherisnord, 39 anos, trabalha carregando sacos de arroz ou cimento, o que lhe rende cerca de dois dólares por dia. “É como eu consigo me defender. Aqui não temos ajuda do governo, não nos dão comida nem água”, diz ao ressaltar o aumento da violência sexual e de outros crimes como roubo ou latrocínio nas microvielas que separam um barraco do outro. “Talvez seja o destino ficar aqui até morrer”.
Portador de uma deficiência que o faz cadeirante, Charles Robiou (foto acima), 34 anos, vive há quatro anos com a mãe, duas irmãs e duas sobrinhas no mesmo local em que vendem frango, manteiga, doces e ervas – tudo sem refrigeração, descoberto e com moscas. Para piorar, o calor cruel sob o telhado de zinco faz os 40 graus do lado de fora parecerem 50. “Montamos a vendinha com o dinheiro que recebemos de uma ONG para ajudar na retirada dos escombros. Mas aqui não temos dignidade, não há banheiro, não há água. E quando chove, uma água suja sobe e inunda a nossa casa”.
As casas, com chão de terra, roupas penduradas em varais sobre as camas e portas de chapa de metal se mesclam à paisagem composta por crianças sem roupa, idosos famintos e a pouca comida preparada em estruturas escassas, onde o poder público não circula e as tropas da missão da ONU não patrulham.
“Não há um dia que seja fácil. E, para agravar as coisas, convivemos diariamente com a violência, no acerto de contas entre rivais e nos estupros”, conta Thermidores Terméus, 22 anos, que vive com a mulher Immanuelle, 19 anos, e a bebê Estessy, de 2 anos (foto abaixo).
É também nos acampamentos que a rivalidade entre gangues volta a compor a rotina dos haitianos. Sem iluminação pública, ninguém se arrisca a caminhar pelas vielas entre barracos quando anoitece. Assim, homicídios ganham novos terrenos longe dos olhos das forças de segurança.
O governo haitiano também se ressente da reconstrução inexistente do país. Dos cerca de 10 bilhões de dólares prometidos para o Haiti em janeiro de 2010, menos de 5% passaram pelas mãos das instituições estatais ou das organizações da sociedade civil haitiana. Estima-se que metade do dinheiro tenha ficado com organismos internacionais e tenham sido gastos com ajuda humanitária, postos de trabalho de curto prazo, abrigos e remoção de escombros. Um assessor próximo ao presidente Michel Martelly e ao primeiro-ministro Laurent Lamothe lembra que à época todos queriam posar como doadores, mas apenas metade do prometido acabou sendo entregue. Apesar de aplaudir os dez anos da Minustah no país e rezar para que esses se transformem em 20, ele tece críticas ao próprio Brasil, que não teria conseguido dar um salto para além da segurança pública. “Não fico triste de o Brasil investir em Cuba e em outros países. Só fico triste de não ter investido aqui”, diz.
O organismo da ONU que deveria coordenar a reconstrução a longo prazo foi encerrado em 2012. Hoje, a maior segurança financeira do país vem do Petrocaribe, acordo com a Venezuela que garante ao Haiti 400 milhões de dólares ao ano. Mas mesmo esse esquema é incerto para as próximas décadas.
Depois do terremoto que destruiu o pouco das estruturas que restavam do país, o Haiti viu sua realidade piorar ainda mais. No fim de 2010, foi palco de um surto de cólera que matou 8.300 pessoas e contaminou mais de 650 mil. Em agosto de 2012, a tempestade tropical Isaac causou perdas agrícolas na ordem de 254 milhões de dólares e deixou 1,6 milhão de haitianos em situação de emergência.
“O Haiti sempre foi um país muito pobre, cheio de surpresas. Aqui, como eles mesmos dizem, é o ‘Vivrel’inesperé’ (Viver o inesperado)”, lembra o cônsul brasileiro Vitor Hugo Irigaray. Segundo o diplomata, que trabalhou no Haiti pela primeira vez há 25 anos, a falta de infraestrutura é a maldição do país, que sofrerá com a saída das tropas estrangeiras. “O dia em que tirarem a missão, isso vai virar um caos. Eles não estão preparados, não existe uma força que possa garantir a segurança. E se não há segurança como vamos ter paz?”, questiona.
Fonte: Carta Capital.