A expectativa é de que se oficialize nesse encontro, em Fortaleza, a criação de um fundo de reservas contingente, com valor inicial de US$ 100 bilhões.
O economista Paulo Nogueira Batista Jr, diretor executivo do Brasil e de mais dez países no FMI, costuma dizer que se tudo der certo na Cúpula de líderes dos Brics, que se reúne nesta terça-feira, em Fortaleza, a capital cearense passará à história como um ensaio de Bretton Woods do século XXI.
A expectativa é de que se oficialize nesse encontro a criação de um fundo de reservas contingente, com valor inicial de US$ 100 bilhões (US$ 41 bilhões da China; Brasil, Rússia e Índia, com US$ 18 bilhões cada; e a África do Sul, com US$ 5 bilhões).
Trata-se de uma subscrição virtual, uma espécie de pacto de ajuda mútua.
A partir de sua assinatura os cinco participantes se comprometem a garantir um socorro recíproco em caso de desequilíbrio cambial grave, motivado , por exemplo, por uma fuga de capitais, como a que se ensaiou no colapso das subprimes, em 2008.
Outra iniciativa que deve ser oficializada em Fortaleza é a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) , que terá um fundo inicial de US$ 50 bilhões, subscrito em partes iguais pelos cinco integrantes do encontro.
A ideia é que o NBD possa operar globalmente, para além do perímetro do grupo, financiando projetos de infraestrutura em todo o mundo pobre e em desenvolvimento. Seria, assim, a principal ferramenta de influencia geopolítica dos Brics na construção de um novo polo de liderança mundial.
A sede do banco provavelmente será em Xangai, mas o Brasil pleiteia a presidência do novo organismo que deverá realizar seu primeiro financiamento em 2016.
Se o fundo de reservas guarda semelhanças com a função original do FMI, decidida em 1944 na cidade norte-americana de Bretton Woods, o Novo Banco de Desenvolvimento seria a contrapartida bricsniana do Banco Mundial.
As instituições originais surgiram da necessidade de se proteger as economias dos desequilíbrios devastadores da lógica capitalista, cujo desdobramento totalitário nos anos 30/40 cobraria da humanidade o custo sangrento de uma Segunda Guerra.
Bretton Woods foi um pedaço dessa tentativa de reconstruir a institucionalidade destruída pelo colapso bélico, erguendo amortecedores que diluíssem a repetição de suas causas no futuro.
O papel coordenador do Estado no desenvolvimento tornar-se-ía possível a partir daí, graças à reconstrução de uma ordem econômica internacional regulada e estabilizada pelos acordos assinados em 1944.
A meta era alcançar o pleno emprego, a estabilidade dos preços internacionais e certa paridade fixa entre as moedas –com ajustes cambiais periódicos, sem golpear o comércio com a guerra protecionista.
Foi esse mundo que os 730 delegados de 44 países reunidos em Bretton Woods idealizaram depois de três semanas de debates.
Contrariando visões mais arrojadas como a de Keynes, que defendia a criação de uma moeda comum independente, o bancor, convencionou-se que o dólar faria o papel de referência cambial básica, ancorado em uma paridade fixa de US$ 35 por onça-troy ( 31,1 gramas de ouro).
Na retaguarda funcionaria o Banco Mundial, como ferramenta auxiliar da reconstrução e do desenvolvimento.
O mundo imaginado em Bretton Woods funcionou até agosto de 1971, quando o governo norte-americano, afogado em gastos imperiais impostos por guerras e intervenções, mas premido também pela própria concorrência comercial que o sucesso de Bretton Woods ajudou a fomentar, rompeu unilateralmente o vínculo dólar/ouro negociado vinte e sete anos antes.
A ruptura da ‘paridade-mãe’ desencadearia um efeito dominó devastador.
Ajustes cambiais cada vez mais agressivos e contraditórios instauraram o salve-se quem puder no sistema monetário internacional.
Eram os dobrados fúnebres do chamado ‘anos dourados do capitalismo’ –um período de relativa estabilidade e crescimento contínuo, ancorado em uma ordem pós-guerra que se esgotara, a exemplo do poder absoluto da potência hegemônica que hierarquizara o mundo sob as asas –ou garras—até então.
Um sistema monetário internacional marcado pela mobilidade de capitais e a desordem cambial, feita de paridades flutuantes e unilaterais, não gera apenas incerteza contábil.
Oscilações bruscas no valor da moeda de um país –impostas, não raro, por mudanças internacionais alheias a sua vontade– alteram as relações de trocas no comércio exterior; destroem parques fabris (vide o efeito asiático sobre a industrialização brasileira); devastam empregos e podem, da noite para o dia, liquefazer o poder de compra de nações inteiras ceifando a subsistência e o futuro de milhões de famílias e assalariados.
Num mundo desprovido de qualquer outro poder reconhecido, que não o Conselho de Segurança da ONU, a supremacia das finanças desreguladas substituiu o frágil espaço da coordenação e da cooperação pela ideologia dos mercados autorreguláveis, consagrada no credo neoliberal.
A crise de 2008, antes de sepultar, agravou a instabilidade e a entropia intrínsecas à lógica de um capitalismo afogado em sua própria liberdade.
É nesse ambiente conturbado, em que a mobilidade dos capitais instituiu um poder sem paralelo, dotado de turquesas para impor interditos e obrigações a Estados, partidos e projetos de desenvolvimento, que deve ser avaliada a importância da cúpula dos Brics, que se reúne nesta 3ª feira, em Fortaleza.
Sua real dimensão só pode ser efetivamente ponderada a partir da compreensão histórica da desordem planetária implantada pelo capitalismo, em 40 anos de esfarelamento de Bretton Woods.
Leia a seguir uma análise do economista Luiz Gonzaga Belluzzo sobre a transição em curso no sistema econômico internacional. Escrita em 1995, antes, portanto, da crise das subprimes, ela antecipa com clareza o desfecho da desordem que a reunião dos Brics tenta agora superar.
O declínio de Bretton Woods e a emergência dos mercados “globalizados”
Por Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, o projeto de sociedade democrática discutido entre as forças políticas que se opuseram ao nazi-fascismo foi construído à luz de lembranças terríveis. Os anos 20 e 30 deste século revelaram um capitalismo cada vez mais poderoso em sua capacidade de criar e destruir, de transformar a concorrência em monopólio, de praticar o protecionismo, de arrasar as moedas nacionais, de causar o desemprego de homens e a paralisação das máquinas.
Revelaram também estes anos loucos e trágicos que as sociedades podem reagir à violência cega e desagregadora das leis econômicas com as armas da brutalidade, do voluntarismo político e da impiedosa centralização das decisões. O fascismo teve muitas máscaras, mas é inegável que em sua essência ele representou o drama da vingança do político contra as pretensões de autonomia do econômico. Era preciso subtrair a produção e a troca de mercadorias ao império das normas emanadas do diktat do ganho monetário e submetê-las à vontade do Fuhrer e às necessidades do povo.
O regime econômico fascista foi um monstruoso movimento “populista”, uma rebelião contra “a objetividade” das leis econômicas e suas conseqüências funestas sobre as condições de vida dos indivíduos. Forças políticas importantes que combateram o fascismo, sabiam muito bem que a sobrevivência da democracia não dependia apenas da restauração das instituições e dos mecanismos de representação popular, do equilíbrio de poderes e do controle público dos atos das autoridades.
A experiência negativa dos anos 20 e 30 deixou uma lição: o capitalismo da grande empresa e do capital financeiro levaria inexoravelmente a sociedade ao limiar de outras aventuras totalitárias, caso não fosse constituída uma instância pública de decisão capaz de coordenar e disciplinar os megapoderes privados.
A ameaça à liberdade, dizia Karl Mannhein, não vem de um governo que é “nosso”, que elegemos e que podemos derrubar, senão das oligarquias sem responsabilidade pública. As coalizações de interesses e as combinações empresariais típicas do capitalismo contemporâneo têm poder para adotar medidas arbitrárias, como o racionamento da produção, greve de investimentos, aumentos abusivos de preços, controle de patentes, de recursos e de mercados.
As forças sociais e os homens de poder incumbidos de reconstruir as instituições capitalistas do pós-guerra estavam prenhes desta convicção.
Para evitar a repetição do desastre era necessário, antes de tudo, constituir uma ordem econômica internacional capaz de alentar o desenvolvimento, sem obstáculos, do comércio entre as nações, dentro de regras monetárias que garantissem a confiança na moeda-reserva, o ajustamento não deflacionário do balanço de pagamentos e o abastecimento de liquidez requerido pelas transações em expansão.
Tratava-se, portanto, de erigir um ambiente econômico internacional destinado a propiciar um amplo raio de manobra para as políticas nacionais de desenvolvimento, industrialização e progresso social. A construção e a gestão desse ambiente internacional favorável encontraram resposta adequada nas reformas promovidas nas instituições e nas políticas dos Estados Nacionais. As novas instituições e as políticas econômicas do Estado Social estavam comprometidas com a manutenção do pleno emprego, com a atenuação, em nome da igualdade, dos danos causados ao indivíduo pela operação sem peias do “mecanismo econômico”. Alliez (1988) diz, com razão, que durante mais de duas décadas realizou-se a criação de um mundo fundado sobre o direito ao trabalho, que tinha como objetivo o pleno emprego, o crescimento dos salários reais.
“Promover esta dinâmica, onde o crescimento dos salários ocorre em benefício dos lucros que eles engendravam, implica uma modificação do papel do Estado. Este deve, não apenas ratificar e garantir os acordos de produtividade, mas também manter, quando não planificar, a dinâmica revestida por eles: por um lado estimulando o consumo dos assalariados através do aumento das transferências sociais e, por outro, sustentado os investimentos produtivos – controle das taxas de juros e política de investimentos públicos”.
A concepção de um desenvolvimento nacional, no marco de uma ordem internacional estável e regulada não era uma fantasia idiossincrática, mas decorria do “espírito do tempo”, forjado na reminiscência da experiência terrível das primeiras quatro décadas deste século.
Tampouco era fortuito o papel atribuído à ação do Estado no estímulo ao crescimento, na prevenção das instabilidades da economia e na correção dos desequilíbrios sociais.
Os acontecimentos que vêm se manifestando no último quarto de século parecem indicar que a era keynesiana – os anos dourados do crescimento capitalista – foi sucedida, desde o começo dos 70, por turbulências e instabilidades que a história poderá revelar tão formidáveis quanto as que irromperam nas décadas de 20 e 30.
O fato é que o conjunto das relações comerciais, produtivas, tecnológicas e financeiras que nasceu do acordo de Bretton Woods e prosperou sob a liderança americana, não resistiu ao próprio sucesso. Os Estados Unidos e sua economia cumpriram, durante os primeiros vinte anos do pós-guerra a função hegemônica que decorria de sua supremacia industrial, financeira e militar. Sob o manto deste hegemonia foram reconstruídas as economias da Europa e do Japão e criadas as condições para o avanço das experiências de industrialização na periferia do capitalismo.
Antes porém de entrar na avaliação do desempenho dos sistemas de Bretton Woods e discutir as razões de sua crise, cabe algumas considerações sobre o papel do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial.
As instituições multilaterais de Bretton Woods – o Banco Mundial e o FMI – nasceram com poderes de regulação inferiores aos desejados inicialmente por Keynes e Dexter White, respectivamente representantes da Inglaterra e dos Estados Unidos nas negociações do acordo, que se desenvolveram basicamente , entre 1942 e 1944.
Harry Dexter White pertenceu à chamada ala esquerda dos New Dealers e foi por isso, depois da guerra, investigado duramente pelo Comitê de Atividades Anti-Americanas do Congresso. Seu plano inicial previa a constituição de um verdadeiro Banco Internacional e de um Fundo de Estabilização.
Juntos o Banco e o Fundo deteriam uma capacidade ampliada de provimento de liquidez ao comércio entre os países-membros e seriam mais flexíveis na determinação das condições de ajustamento dos déficits do balanço de pagamentos. Isso assustou o establishiment americano. Uns porque entendiam que estes poderes limitavam seriamente o raio de manobra da política econômica nacional americana. Outros porque temiam a tendência “inflacionária” desses mecanismos de liquidez e de ajustamento.
Keynes propôs a Clearing Union, uma espécie de Banco Central dos bancos centrais. A Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor , ao qual estariam referidas as moedas nacionais. Os déficits e superávits dos países corresponderiam a reduções e aumentos das contas dos bancos centrais (em bancor ) junto à Clearing Union.
Uma peculiaridade do Plano Keynes era a distribuição mais eqüitativa do ônus do ajustamento dos desequilíbrios dos balanços de pagamentos entre deficitários e superavitários. Isto significava, na verdade, dentro das condicionalidades estabelecidas, facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países superavitários.
O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários e manter as economias nacionais na trajetória do pleno-emprego. A proposta também sofreu sérias restrições dos Estados Unidos, país que emergiu da segunda guerra como credor do resto do mundo e superavitário em suas relações comerciais com os demais. O enfraquecimento do Fundo, em relação às idéias originais, significou a entrega das funções de regulação de liquidez e de emprestador de última instância ao Federal Reserve.
O sistema monetário e de pagamentos que surgiu do Acordo de Bretton Woods foi menos “internacionalista” do que desejariam os que sonhavam com uma verdadeira “ordem econômica mundial”.
O problema do FMI não é seu poder excessivo, mas sua deplorável submissão ao poder e aos interesses dos Estados Unidos. Muito se tem escrito sobre o papel dos Estados Unidos na prosperidade do pós-guerra. Alguns autores procuraram definir com maior precisão as condições de estabilidade do sistema de Bretton Woods: o benefício da seignorage , desfrutado pelo país emissor da moeda reserva (os EUA) era condição para que os países-membros executassem, dentro das regras, políticas “keynesianas” internas e estratégias neo-mercantilistas.
Padoan (1986) sugere que, para os Estados Unidos, os benefícios da seignorage se desdobravam em: a) objetivos estratégicos: os americanos suportaram a maior parte dos custos da aliança militar formalizado no tratado do Atlântico Norte e puderam fazê-lo em grande medida, graças à condição de emissores da moeda reserva internacional; b) objetivos econômicos: a seignorage permitiu a expansão da indústria americana e de seu estilo tecnológico (o fordismo), sobretudo através do investimento direto; c) objetivos financeiros: a posição de “banqueiro internacional” dos Estados Unidos concedeu um enorme espaço para o crescimento dos bancos americanos.
Ao perseguir estes objetivos, a economia americana funcionava – Minsky assinalou com correção – como “reguladora” do sistema capitalista. Isto significa que os Estados Unidos cumpriam o papel de fonte autônoma de demanda efetiva e emprestador de última instância. Para os países membros do sistema hegemônico esta função reguladora era uma garantia ex-ante de políticas nacionais expansionistas continuadas e estratégias de crescimento neo-mercantilistas. Por isso, os Estados Unidos e sua economia começaram a sentir os efeitos da ascensão dos parceiros/competidores. Japão e Alemanha, por exemplo, reconstruíram sistemas industriais e empresariais mais novos e mais permeáveis à mudanças tecnológica e organizacional e os novos industrializados da periferia ganharam maior espaço no volume crescente do comércio mundial.
Não por acaso, o saldo negativo do balanço de pagamentos americano mostrou, a partir do início dos 70, uma participação cada vez mais importante do déficit comercial. Durante os anos 50 e 60 a balança comercial americana foi sistematicamente superavitária à despeito da posição deficitária do balanço global.
As inevitáveis pressões sobre o dólar se intensificaram e já em 1971 Nixon suspendeu a conversibilidade do dólar a uma taxa fixa com o ouro.
Em 1973 o sistema de paridades fixas, mas ajustáveis, de Bretton Woods foi substituído por um sistema de flutuações sujas.
Os Estados Unidos não foram capazes de sustentar a posição do dólar como moeda-padrão, na medida em que uma oferta “excessiva” de dólares brotava do desequilíbrio crescente do balanço de pagamentos, agora sob a pressão de um déficit comercial. Minsky e outros autores sustentam que o “dólar standard ”, à semelhança dos sistemas nacionais, era na verdade, um sistema monetário de crédito. Nesse sistema, o déficit global do balanço de pagamentos determinava a quantidade do crédito e a situação positiva da balança comercial garantia a qualidade dos fluxos em dólares colocados à disposição de outros países, empresas e indivíduos.
Foi, aliás, sob o signo da desorganização financeira e monetária que se deu a formidável expansão do circuito financeiro “internacionalizado”, nos anos 70.
A crise do sistema de regulação de Bretton Woods, permitiu e estimulou o surgimento de operações de empréstimos/depósitos que escapavam ao controle dos bancos centrais. A fonte inicial dessas operações “internacionalizadas” foram certamente os dólares que excediam a demanda dos agentes econômicos e das autoridades monetárias estrangeiras. O primeiro choque do petróleo e a famosa reciclagem privada dos petrodólares ampliaram as bases da oferta de crédito internacional e empurraram o sistema para a zona de riscos crescentes. De qualquer maneira, a euforia do endividamento externo que deu sobre-fôlego a muitos projetos de industrialização e de crescimento industrial (tanto na periferia do capitalismo, quanto na área socialista), já era resultado da fadiga e das contradições que atingiram os mecanismos básicos que garantiam, simultaneamente, a estabilidade e o crescimento das economias centrais.
O circuito financeiro internacionalizado e operado pelos grandes bancos comerciais, à margem de qualquer regulamentação ou supervisão dos bancos centrais acentuou sobremaneira a tendência à super expansão dos empréstimos e o progressivo rebaixamento da qualidade do crédito concedido.
Como já foi dito em outra ocasião (Tavares e Belluzzo, 1986), o circuito financeiro internacional passou a funcionar como um sistema de “crédito puro” em suas relações com governos e empresas, com criação endógena de liquidez e altos prêmios de risco. Os agentes endividados, por sua vez, aceitavam qualquer taxa de juros para a rolagem e ampliação de suas dívidas.
A internacionalização financeira surgida no final dos 60 expressou-se através da crescente supremacia da função de meio de financiamento e de pagamento do dólar em relação à sua função de standard universal. O conflito entre as duas funções, que devem coexistir pacificamente num sistema monetário estável, chegou no final dos anos 70 a suscitar ensaios da substituição do dólar por Direitos Especiais de Saque (criados em 1967) emitidos pelo FMI e lastreados em uma “cesta de moedas”.
As ameaças ao dólar foram, no entanto, contidas pelo gesto unilateral dos Estados Unidos que, no final de 1979, subiram abruptamente as taxas de juros com o propósito de preservar a função de reserva de sua moeda nacional.
Se alguém desejasse marcar uma data para a derrocada final da arquitetura de Bretton Woods teria alguma chance de acertar, escolhendo outubro de 1979. Não se trata apenas de constatar que os Estados Unidos deixaram de exercer o papel de “país residual”, isto é, de país capaz de amortecer as tensões – tanto as inflacionárias quanto as recessivas – do sistema funcionando como fonte autônoma de demanda efetiva e lender of last resort .
Ao impor a regeneração do papel do dólar como reserva universal através de uma elevação sem precedentes das taxas de juros, os Estados Unidos deram o derradeiro golpe no estado de convenções que sustentara a estabilidade relativa da era keynesiana.
Durante os anos 80 a economia mundial foi afetada por flutuações amplas nas taxas de câmbio das moedas que comandam as três zonas monetárias (dólar, iene e marco). Estas flutuações nas taxas de câmbio foram acompanhadas por uma extrema volatilidade das taxas de juros. Na verdade, as flutuações das taxas de câmbio, supostamente destinadas a corrigir desequilíbrios do balanço de pagamentos e dar maior autonomia às políticas domésticas, foram desestabilizadoras. Isto porque a crescente mobilidade dos capitais de curto prazo obrigou a seguidas intervenções da política monetária, determinando oscilações entre taxas de juros das diversas moedas e criando severas restrições a ação da política fiscal.
É neste ambiente de instabilidade financeira e “descentralização” do sistema monetário internacional que ocorrem as transformações financeiras conhecidas pelas designações genéricas de globalização , desregulamentação e securitização .
Estas transformações foram amadurecendo ao longo de um período de crescimento interrompido por recessões relativamente suaves e por intervenções “anti-cíclicas” dos governos. Daí duas conseqüências importantes podem ser assinaladas: a) foram evitados os processos agudos de desvalorização de dívidas ( debt deflation) ; e b) a partir de 1975 cresceu proporcionalmente o peso e a importância da dívida pública americana na composição dos portfólios privados. Nos anos 80, a ampliação dos dois déficits-orçamentário e comercial dos Estados Unidos foi um fator importante para dar um segundo impulso e uma nova direção ao processo de globalização financeira. Na prática, a ampliação dos mercados de dívida pública constituíram a base sobre a qual se assentou o desenvolvimento do processo de securitização. Isto não apenas porque cresceu a participação dos títulos americanos na formação da riqueza financeira demandada pelos agentes privados americanos e de outros países, mas também porque os papéis do governo dos Estados Unidos são os produtos mais nobres e seguros dos mercados integrados.
A expansão da posição devedora líquida norte-americana permitiu o ajustamento, sem grandes traumas, das carteiras dos bancos, na medida em que os créditos desvalorizados dos países em desenvolvimento foram sendo substituídos por dívida emitida pelo Tesouro Nacional aos Estados Unidos.
Estamos tentando argumentar que a evolução da crise do sistema de crédito internacionalizado e as respostas dos Estados Unidos ao enfraquecimento do papel do dólar criaram as condições para o surgimento de novas formas de intermediação financeira e para o desenvolvimento de uma segunda etapa da globalização . Esse processo de transformações na esfera financeira pode ser entendido como a generalização e a supremacia dos mercados de capitais em substituição à dominância anterior do sistema de crédito comandado pelos bancos.
Os mercados financeiros, de maneira geral, tendem a individualizar as perdas, isto é, a descarregar sobre os agentes privados o risco do inadimplemento ou de iliquidez. Isto significa que estas formas financeiras são intrinsecamente deflacionárias.
Dito de outra forma: as tensões de iliquidez ou de inadimplemento que surgem em algum ponto do sistema são “resolvidas” através da queda de preços dos instrumentos financeiros. Estas características contrastam com as tendências “inflacionárias” implícitas no sistema de crédito em que as situações de iliquidez e possibilidade de “quebra” são enfrentadas pelo banco central através do redesconto ou de ações de last resort .
Por isso mesmo, nos novos mercados financeiros a informação elaborada pelas agências de avaliação de crédito tornou-se um elemento fundamental na decisão dos investidores. Isto reforça, no caso dos países em desenvolvimento, a tendência a tornar o crédito mais seletivo, privilegiando as empresas internacionais ou aquelas capazes de gerar receita em moeda estrangeira. Estes “novos” mercados teriam a virtude de combinar as vantagens da melhor circulação da informação, da redução dos custos de transação e da distribuição mais racional do risco.
A teoria dos “mercados eficientes” pretende, enfim, ensinar que todas as informações relevantes sobre os fundamentals da economia estão disponíveis em cada momento para os participantes do mercado. E que, na ausência de intervenção dos governos, a ação racional dos agentes seria capaz de orientar a melhor distribuição dos recursos, entre os diferentes ativos, denominados em moedas distintas.
Na prática o que se assistiu, mais uma vez, no caso do México e de outros mercados emergentes foi ao espetáculo do “erro persistente” expresso nas avaliações formuladas pelos mercados e pelas agências especializadas na classificação dos devedores. O comportamento dos investidores correspondeu muito mais – tanto na entrada quanto na saída – ao que Keynes chamou de instinto de manada.
A história se repete. Mas ainda são fracas as vozes que clamam pela reconstituição de uma verdadeira ordem econômica internacional.
Os fanáticos do livre mercado se recusam a compreender que a ordem mercantil está seriamente ameaçada quando inexistem regras e instituições monetárias centralizadas capazes de garantir um mínimo de previsibilidade às decisões privadas.
Reexaminadas à distância de mais de cinqüenta anos, as concepções de Keynes e de Dexter White sobre as instituições e as regras que deveriam presidir uma verdadeira ordem econômica internacional parecem inspiradas numa visão pessimista acerca das virtudes do mercado auto-regulado e particularmente negativa em relação à movimentação livre dos capitais de curto prazo.
Ainda que o sistema de regras e de instituições de Bretton Woods tenha na verdade se revelado apenas uma sombra da realidade imaginada pelos dois homens públicos, hoje ninguém discute o caráter singular do período de expansão capitalista do pós- guerra, até meados dos anos 70.
Estudos recentes demonstram que nenhuma outra etapa do desenvolvimento capitalista apresentou, nem vem apresentando, resultados tão favoráveis no que diz respeito às taxas de crescimento do produto, salários reais, comportamento da inflação e estabilidade das taxas de juros e de câmbio. No entanto, as mudanças tecnológicas, nas formas de concorrência, na organização e na estratégia da grande empresa e, por fim, na operação dos mercados financeiros, ocorridas nas duas últimas décadas, parecem justificar a visão oposta, a que celebra a supremacia dos mecanismos econômicos – a lógica do mercado – sobre as vãs tentativas de disciplinar as forças simultaneamente criadoras e destrutivas do capitalismo.
Depois de algum tempo encapsuladas pela sociedade e pelo Estado, as tendências fundamentais deste regime de produção estão aí e executam a sua vingança: vigorosa economia de tempo e desvalorização do trabalho; e intensificação da concorrência à escala planetária. Neste processo de mundialização da concorrência desencadeou-se uma nova onda de centralização de capitais que se apresenta sob a forma de uma crescente dispersão espacial das funções produtivas e terceirização das funções acessórias ao processo produtivo, acompanhadas de uma violenta concentração das decisões e da circulação de informações no “cérebro” da grande organização.
O predomínio e a capacidade de controle da grande empresa sobre os mercados encontram ambiente favorável no desenvolvimento da nova finança.
Os mercados de capitais são mais sensíveis à avaliação do risco, o que determina uma maior seletividade na escolha dos papéis oferecidos à consideração dos gestores de carteira. Ao mesmo tempo, o caráter globalizado dos mercados permite às empresas o acesso amplo aos mecanismos de hedge e de proteção contra as flutuações das taxas de câmbio e variações nas condições de crédito nos diversos países.
A centralização do controle capitalista, a busca incessante, imposta pela concorrência, da redução do tempo de trabalho socialmente necessário e o caráter crescentemente “patrimonialista” e volátil dos mercados que transacionam direitos de propriedade e títulos de crédito são processos que se reforçam mutuamente para produzir resultados muito distintos daqueles observados na chamada era keynesiana.
Os ciclos de prosperidade e depressão são mais curtos, as taxas de investimento são sensivelmente mais modestas, o desemprego estrutural se amplia e é cada vez mais estreito o intervalo entre os distúrbios nos mercados financeiros e cambiais. Quanto ao Estado Nacional, ninguém duvida de que sua ação econômica vem sendo severamente restringida: assiste impotente ao desdobramento das estratégias de localização e de divisão interna do trabalho da grande empresa e está cada vez mais à mercê das tensões geradas nos mercados financeiros, que submetem a seus caprichos as políticas monetária, fiscal e cambial.
Mais do que por seu caráter global a nova finança e sua lógica tornaram-se decisivos por sua capacidade de impor vetos às políticas macroeconômicas. Este poder de veto dos mercados financeiros se impõe a todas as economias ainda que de forma diferenciada. Os Estados Unidos, por exemplo, emissores e gestores da moeda reserva, dispõem de maior raio de manobra para executar políticas fiscais e monetárias expansionistas, desde que aceitem o risco permanente de ataques especulativos contra o dólar e administrem adequadamente as tensões que se manifestam através da elevação imediata das taxas de juros de longo prazo, quando o crescimento é julgado “excessivo” pelos mercados.
Na outra ponta do espectro, países de “moeda fraca” não conseguem escapar das situações de instabilidade senão atrelando as respectivas moedas ao curso de uma divisa estrangeira, renunciando ao mesmo tempo a qualquer pretensão de determinar o rumo das políticas fiscal e monetária. A disciplina imposta pelos mercados financeiros, cujos movimentos de antecipação podem destruir a precária estabilidade, acaba inibindo toda e qualquer tentativa de executar políticas ativas, destinadas a promover o crescimento.
Os efeitos mais importantes destas transformações têm sido, por toda a parte, a decadência econômica de muitas regiões, o crescimento do desemprego estrutural, a proliferação de formas de precarização do emprego, e o aumento da desigualdade.
A estas forças negativas o Estado e a sociedade não podem responder com ações compensatórias de outros tempos porque nos mercados globalizados, cresce a resistência à utilização de transferências fiscais e previdenciárias, aumentando ao mesmo tempo as restrições à capacidade impositiva e de endividamento do setor público.
Ao tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos integrados, a globalização desarticulou a velha base tributária das políticas keynesianas e submeteu a capacidade de endividamento do Estado ao poder de veto dos mercados financeiros.
Além disso, a ação do Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, vem sendo contestada pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do individualismo que se opõe a qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado através do mercado capitalista.
A ética da solidariedade é substituída pela ética da eficiência e, desta forma, os programas de redistribuição de renda, reparação de desequilíbrios regionais e assistência a grupos marginalizados têm encontrado forte resistência dentro das sociedades. Não há dúvida de que este novo individualismo tem sua base social originária na grande classe média produzida pela longa prosperidade e pelos processos mais igualitários que predominaram na era keynesiana.
Hoje o novo individualismo encontra reforço e sustentação no aparecimento de milhões de empresários terceirizados e autonomizados, criaturas das mudanças nos métodos de trabalho e na organização da grande empresa.
A ação do Estado é vista como contraproducente pelos bem-sucedidos e integrados e como insuficiente pelos desmobilizados e desprotegidos.
Estas duas percepções convergem na direção da “deslegitimação” do poder administrativo e na desvalorização da política.
Aparentemente estamos numa situação histórica em que a “grande transformação” ocorre no sentido contrário ao previsto por Polanyi (1980): a economia trata de se libertar dos grilhões da sociedade.
Resta saber que respostas a sociedade está preparando para dar às façanhas da economia desentranhada e apenas limitada por suas próprias leis de movimento.
* Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo /1995
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Fonte: Carta Maior