Sobre ganhar e perder

Elaine 2

Por Elaine Tavares.

Desde alguns meses tenho trabalhado com um grupo de educadores da cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, que faz parte de um Centro de Referência Esportiva. O propósito desse centro vai na contramão de tudo aquilo que aprendemos ao longo da vida sobre o que seja a prática esportiva. Num tempo em que os seres humanos estão cada vez mais engalfinhados na competição, esses educadores trabalham com o esporte educacional, uma metodologia que busca aflorar nas crianças as suas habilidades esportivas, respeitando o ritmo de cada uma e despertando o que de melhor podem fazer dentro de seus limites. É um processo de cooperação e solidariedade. Um desafio e um encantamento.

No geral, desde bem pequenos, aprendemos o processo de competição. Na escola, a professora inventa a lógica das estrelinhas para os melhores da classe, e depois das provas os alunos comparam as notas, coisa que, no mais das vezes, provoca em alguns o triste sentimento da derrota e do fracasso. Então, vêm desde os mais tenros anos o aprendizado de que, na vida, estamos sempre a competir. Quem é o mais bonito, quem é o mais rápido, o mais inteligente, o mais habilidoso, o mais esperto. Difícil demais sair desse enrosco depois que entramos na vida adulta. Por isso talvez seja tão difícil enfrentar algumas derrotas, normais na caminhada humana. Não passar de ano, perder o namorado, encerrar uma amizade de longa data. Nada pode turvar a estrada de sucessos sob pena de um mergulho profundo nas águas da tristeza, depressão, imobilidade. É que aprendemos que o bom é ganhar.

Só que o ganhar pressupõe sempre um perdedor. Vai daí que uma vitória sem tristeza é impossível. Alguém sairá machucado. Alguém chorará, alguém mergulhará nas trevas do fracasso. E a derrota sempre está colada ao fraco, ao feio, ao incapaz, ao inútil. Elementos que tantas dores provocam no outro.

Estamos vivendo agora no Brasil a tão falada Copa do Mundo, um certame de futebol, antes arte, agora nada mais que força e rendimento. Nele, como em quase todo jogo, alguém vence, e outro perde. É indefectível. Assim, desde o início das competições, foram muitas as cenas de lágrimas e ranger de dentes daqueles que saíram do jogo. Os perdedores clamam aos céus: Por quê? Por quê? Fizeram tudo certo, treinaram, trabalharam e perderam. O que deu errado? Ora, nada deu errado. Apenas estavam numa competição, e ela, por sua natureza exige que alguém seja vencedor e outro perdedor. Não há saídas. Mas, em vez de entender o processo como tal, sempre há que buscar o “culpado”, a velha ideia do bode expiatório, aquele que, detectado e punido, expurgará toda a dor do fracasso de cada um. Um fracasso que não real, mas imposto pela lógica competitiva. Se o jogo fosse só uma brincadeira, ninguém perderia e não haveria fracassos. Mas, a coisa não é assim.

O Brasil viveu seu momento de perda. Um “vexame”, como diz a imprensa. Sete gols a um. Venceram os alemães. Derrotados e perplexos, os jogadores brasileiros protagonizaram cenas de profunda dor, desespero e perturbação. Estavam na lona, e esse sentimento aumentou em ondas no dia seguinte, com as capas dos jornais e as manchetes televisivas. “Derrota, humilhação, fracasso”. Perder é o pior dos mundos e isso não é por acaso. O sistema de mercadoria do futebol precisa da vitrine das competições para vender seus produtos. E esses produtos são as pessoas. Aqueles que se destacam nos certames mundiais, quando voltam para seus times de origem podem pleitear contratos mais polpudos, podem buscar novos times, fazer mais propagandas de televisão. O dinheiro entra na medida em que o sucesso avança. Essa é a lógica.  A derrota é um corte brusco no valor da mercadoria/pessoa.

A Copa do Mundo, se jogada dentro do espírito do esporte como jogo, como brincadeira, não deveria trazer essa pressão. Poderia ser o alegre encontro de mundos diferentes, de distintas formas de jogar, no qual cada país mostraria suas habilidades, diversas, por sua geografia, por seu clima, por sua cultura. E as pessoas se divertiriam e aprenderiam a trocar experiências. Vencer ou perder não significaria nada. Os estádios seriam abertos ao público gratuitamente, para que todos pudessem vivenciar a beleza do esporte, gritando e vibrando na hora do gol, fosse de quem fosse. Ao final das partidas ninguém choraria, ninguém se sentiria derrotado, humilhado ou triste. Mas, isso, agora, é um utopia. A Copa não é espaço de alegria. É mercado de carne. Ali estão sendo realizados negócios milionários, envolvendo vidas de pessoas. Por isso um encontrão pode significar o fim de tudo para alguém. É a arena dos leões da antiga Roma. Viver ou morrer.

Por isso me entristeço com as lágrimas dos jogadores brasileiros, de joelhos diante da nação. Como nas arenas romanas, as pessoas na arquibancada, que pagaram para ver a vitória, não tem condescendência. A derrota haverá de ser punida com piadas, agressões e, é claro, haverá de surgir o “culpado”, que purgará tudo até a próxima copa. Sei que muitos daqueles meninos que ali estão vendendo sua força de trabalho ganham muito bem para isso. Alguns, levam em um mês o que um trabalhador comum não ganharia em anos. Mas, não importa. Eles são igualmente carne à venda no mercado desse mundo dominado pelo capital. Tão trabalhadores como aqueles que perderam a vida na construção dos estádios. Apenas custam mais, agora. Mas isso não dura para sempre. A idade avança, a contusão aparece e a mercadoria se desvaloriza. Alguns conseguem ajeitar a vida, outros não. Esse é o selvagem mundo da competição.

E, assim, enquanto a mídia aponta suas metralhadoras contra algum provável culpado, eu me encho de ternura por aqueles educadores anônimos lá na cidade de Rio Grande, trabalhando outra forma de ser no mundo, a duras penas, em frente ao mar. Cotidianamente ensinam às crianças que o esporte pode ser prazeroso se for apenas uma prática corporal destinada a alegria e ao jogo. Por conta disso, a cada dois meses, eles fazem os Festivais Esportivos, nos quais as crianças, junto com seus pais, parentes e amigos, se divertem à larga, jogando todo o tipo de jogo sem a pressão de ganhar. A única razão de estar ali é movimentar o corpo e dar risada. Momentos de completa inutilidade, do ponto de vista do capital. Um aprendizado lento que pode demorar gerações. Cooperar, ajudar o outro, perceber os limites, incentivar, desacelerar o passo para esperar o colega, permitir o gol para ver o riso na cara do amigo. Essas coisas simples de uma vida boa.

Vejam que isso não é coisa impossível. É utópico, mas já caminha. Está vivo lá na ponta sul do Rio Grande. Pessoas como Carlos, Felipe, Douglas e tantos outros que disseminam essa forma de praticar o esporte não estão na arena de carne do grande certame mundial, não elevarão seus salários nem farão propagandas na TV. São sonhadores que andam aí, nos caminhos vicinais, a disseminar belezas, forjando um novo jeito de vivenciar nossa humanidade, na cooperação e na solidariedade. Quando o dia deles termina não há lágrimas de derrota, mesmo que não tenham vencido os jogos dos quais participaram, porque ali, o importante foi a troca e o aprendizado mútuo. Se lágrimas há, é de alegria. Porque vale a pena virar o mundo do esporte de ponta cabeça, como nas velhas brincadeiras de criança. Uma cambalhota, uma risada e são todos campeões!…

Imagem tomada de: www.mundodeportivo.com

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