Por Viegas Fernandes da Costa.
Há quase 5 mil anos os egípcios construíram a pirâmide de Qué- ops. O que você diria se a atu- al população do Egito destruís- se esta pirâmide para aproveitar suas pedras em calçamentos ou na construção de muros? A ideia soa tão absurda, que tal exercício de imaginação pa- rece impossível, não é mesmo? Afinal, Quéops, assim como outras construções e vestígios de culturas antigas, constitui importante patrimônio arqueológico que serve não apenas aos interesses da economia do turismo, mas também como elemento fundamental na construção da identidade egípcia. Fonte de trabalho, renda e reconhecimento, o patrimônio arqueológico egípcio é testemunha do engenho humano, de uma complexa e cruel divisão social do trabalho, e da nossa relação com o metafísico. Toda nossa cultura não seria a mesma se simplesmente tivéssemos destruído o patrimônio arqueológico egípcio em nome de uma modernidade voraz.
Se ousássemos tomar das pedras de Quéops para assentá-las em calçamentos. Em paralelo ao desenvolvimento da antiga cultura egípcia, diversos povos também desenvolviam suas culturas no litoral catarinense. Provindos principalmente do interior do continente americano desde aproximadamente 7 mil anos, nosso litoral foi povoado pelas culturas Umbu e Humaitá e, a partir de 5 mil anos, pelos sambaquieiros, responsáveis pela construção dos sambaquis, nossos principais marcos paisagísticos pré-coloniais.
“Garantir a preservação dos sítios arqueológicos do litoral catarinense, e promover políticas de educação patrimonial e de incorporação deste patrimônio às estratégias de turismo arqueológico, envolvendo as populações locais seria importante alternativa de trabalho, renda e de enriquecimento de nossa identidade.
A arqueóloga Madu Gaspar, em seu livro “Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro“, define o sambaqui como o resultado de um ordenado trabalho social que tinha por objetivo, entre outras coisas, construir um imponente marco paisagístico. Ou seja, um sambaqui resulta de uma atividade construtiva consciente do ser humano, e não apenas como um amontoado de conchas. Sua construção representa o trabalho de sucessivas gerações que sobre ele habitaram, e seu interior abriga sepultamentos, instrumentos líticos como os zoolitos, objetos talhados em ossos, artesanato decorativo de uso corporal, além de vestígios diversos da vida cotidiana. Em muitos casos, os sambaquis apresentam, em seus estratos superiores, vestígios da presença de culturas ceramistas mais recentes, como a dos itararés e dos carijós (estes últimos dizimados no contato com os europeus).
Alguns dos sambaquis encontrados no litoral sul de Santa Catarina estão dentre os maiores do mundo. Entretanto, apesar da sua antiguidade e riqueza arqueológica, há décadas vêm sendo ocupados pela expansão urbana e destruídos para servirem na construção civil, na produção de adubos e para o aterramento de terrenos. Muitos foram utilizados na composição da base para a construção da BR-101. Poucos foram preservados e incorporados ao patrimônio cultural brasileiro, como alguns em Joinville. Outros aparecem sinalizados por placas às margens de rodovias, como é o caso do sambaqui localizado junto à praça de pedágio nos limites
entre Palhoça e Paulo Lopes. Estes, entretanto, sem qualquer fiscalização e trabalho de educação patrimonial, ficam à mercê das escavações não autorizadas que têm por objetivo o furto e comercialização de artefatos pré-coloniais no mercado clandestino.
Se parece absurdo destruir uma pirâmide egípcia para utilizar suas pedras na construção de muros e calçadas, por que não soa absurda a destruição dos nossos sambaquis, construídos há quase 5 mil anos e que abrigam a história de dezenas de gerações que ali deixaram seus registros? Importante dizer que, para além dos sambaquis, o litoral catarinense é rico em outros sítios arqueológicos. No município de Garopaba, por exemplo, próximo à praia da Ferrugem, turistas caminham sobre antiquíssimas oficinas líticas, locais onde povos pré-coloniais produziam suas ferramentas e armas de pedra, sem se darem conta da história do local. Estas oficinas se espalham de norte a sul do nosso estado, e poderiam agregar valor ao turismo catarinense. Entretanto, são ignoradas e vandalizadas, inclusive pelo próprio poder público, que tem a responsabilidade de preservá-los.
Neste sentido Keler Lucas, em seu livro “A arte rupestre em Santa Catarina”, denuncia que em 1975 o poder público municipal de Garopaba ordenou a destruição, à marretadas, da oficina lítica do Costão da Casqueira,
para aproveitar as pedrinhas negras no calçamento da praça central da cidade. Absurdos como este, entretanto, não são exceção, e a vandalização do patrimônio arqueológico em Santa Catarina continua sendo praticada. Tão importante quanto os sambaquis e as oficinas líticas é o conjunto de inscrições rupestres distribuídas pelo litoral centro-sul catarinense.
André Prous, em seu livro “Arqueologia Brasileira”, ao tratar dos sítios rupestres da tradição litorânea catarinense, encontrados em uma área que envolve a Ilha de Santa Catarina e se estende ao Sul até Garopaba, afirma que estes sítios possuem um caráter único. Prous defende que estas inscrições rupestres não podem ser comparadas a nenhum outro conjunto rupestre conhecido atualmente; tratando-se assim de uma criação local. Sua constatação é, por si, dado suficiente para garantir a importância dos estudos e da preservação destas inscrições, cujos autores permanecem ainda indeterminados. No caso específico de Garopaba, as inscrições são encontradas na Ilha do Coral, situada em alto mar entre a Praia da Pinheira (Norte) e Garopaba (Sul) e, na área continental, na Pedra do Galeão, próxima à Praia da Silveira. A Pedra do Galeão representa um conjunto
arqueológico-paisagístico sui generis na região, com uma morfologia particular e uma vista bastante particular do Oceano Atlântico.
Apesar disso, em recente visita ao local, João Henrique Quoos, professor do Instituto Federal de Santa Catarina, constatou a recente vandalização deste importante sítio arqueológico. Garantir a preservação dos sítios arqueológicos do litoral catarinense, e promover políticas de educação patrimonial e de incorporação deste patrimônio às estratégias do turismo arqueológico, envolvendo as populações locais, seria importante alternativa de trabalho e renda e de enriquecimento de nossa identidade. Para além, é nos sítios arqueológicos que poderemos encontrar respostas para uma série de questões ambientais, éticas e tecnológicas do presente. A destruição destes espaços representa, assim, a destruição destas respostas e de novas questões. Afinal, destruir nossos sambaquis, oficinas líticas e inscrições rupestres, como vimos fazendo, é o mesmo que os egípcios derrubarem Quéops para construir muros. Um absurdo tão grande quanto este que permitimos acontecer sob nossos olhos.
Fonte: Jornal Expressão Universitária – julho de 2014.