Por Gabryella Ruiz*
“Nem mesmo na escravidão e sob o regime de servidão existiu uma opressão tão terrível do povo trabalhador como a que sofrem os operários quando não podem opor resistência aos capitalistas nem conquistar leis que limitem a arbitrariedade patronal.” V. Lênin (“Sobre as Greves”, V.I. Lênin, 1899)
A greve dos trabalhadores da construção civil de Fortaleza, iniciada no dia 23/06/2014, está ocorrendo sob uma forte investida repressiva do setor patronal e das instituições do Estado. Neste ano, em que as reivindicações dos trabalhadores se somam aos protestos contra a situação de injustiça social no país do espetáculo da Copa, a criminalização do movimento alcança seu ponto alto, convergindo para isto, a atuação parcial da imprensa oficial, os atos de violência policial e as decisões judiciais inconstitucionais, desproporcionais e totalmente alheias à realidade social.
Nesta última semana foram noticiados vários momentos de confronto envolvendo a ação da polícia militar contra manifestantes grevistas que se dirigiram ao canteiro de obras do Shopping Riomar. A tropa de choque, nos dias 23, 24, 25 e 26 de junho, impediu que o carro de som do sindicato e os manifestantes em caminhada transitassem no entorno da obra. Note-se que o afastamento do referido canteiro dos trabalhadores em greve é objeto de decisão judicial proferida liminarmente, ou seja, de forma antecipada, em ação de interdito proibitório ajuizada pela empresa.
A referida decisão, que se deu mesmo antes de ser ouvido o sindicato da categoria, ordenou o afastamento deste a uma distância mínima de 500 (quinhentos) metros do perímetro das obras do referido shopping, arbitrando multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a cada vez que houver descumprimento a esta ordem judicial.
Várias ilegalidades podem ser percebidas no conjunto de medidas judiciais que foram tomadas no caso. Inicialmente tem-se a inadequação da ação de interdito proibitório, tão utilizado pela patronal contra as greves dos trabalhadores em todo o país. Este instrumento é inteiramente inapropriado para resolver os conflitos de greve, uma vez que se destina a proteger o bem contra aquele que, com a vontade de possuir a coisa, pratica atos que ameaçam a posse, o que não se evidencia na greve, pois a intenção dos grevistas nos piquetes é convencer os demais a juntarem-se ao movimento. Segundo, trata-se de uma ação que, deliberadamente, proporciona a visão limitada por parte do juiz, que ignora o conflito como um todo, considerando que este teve início com a deflagração da greve, esquecendo-se que por trás de um protesto existe o descumprimento de outros direitos.
No entanto, a decisão continua produzindo seus efeitos e o resultado de tal ato é que ele não somente dificultou, mas impossibilitou o desenvolvimento de contato direto dos grevistas com os trabalhadores daquela obra, com a evidente violação da liberdade de reunião dos obreiros da construção civil, exarada no art. 5º, XVI da Constituição Federal. Este instituto garante que todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.
A decisão destinou-se ainda a impedir preventivamente os representantes dos trabalhadores de exercer sua atividade sindical, por presumir que os piquetes das greves seriam violentos, cuidando em proteger a propriedade da empresa, enquanto, por outro lado, restou completamente esvaziado o direito consagrado no art. 8º, I, da Constituição Federal, que veda a interferência e intervenção do Poder Público na organização sindical, bem como o art. 9º, que assegura o direito de greve. A tutela preventiva em comento acabou funcionando na prática como medida de censura, como uma espécie de licença, ambas expressamente vedadas pelos referidos preceitos constitucionais. O que se pode constatar,quanto à intenção da empresa, ao ingressar com a referida ação, é que esta pretende em sua demanda, na realidade, não a proteção de sua posse, mas utilizar-se do Judiciário para alcançar a ilegal privação de um direito fundamental dos trabalhadores da construção civil: o direito de greve. Diante da resistência dos trabalhadores, que nestes dias tentaram exercer o seu direito de manifestação, a empresa utilizou-se de expressivo contingente policial, solicitando ainda a aplicação da multa exorbitante contra o sindicato e inclusive a prisão do coordenador geral da entidade, pela prática do crime de desobediência, numa clara tentativa de assediar e criminalizar o movimento sindical.
Tal tentativa de criminalização é um expediente comum utilizado por parte do Sindicato Patronal e seus filiados. Como exemplo, temos o processo criminal aberto em 2012 através de queixa-crime elaborada pelo Sindicato Patronal em defesa da empresa Coigma – Construtora e Incorporadora Giovanni Magi Ltda., na qual o coordenador do sindicato foi acusado da suposta prática do crime de dano. Nesse caso, todas as testemunhas do próprio Sindicato Patronal desmentiram a informação e afirmaram que o coordenador não estava envolvido no dano.
Inclusive o engenheiro responsável pela obra e que deu queixa na delegacia afirmou que sequer conhecia o acusado. Ou seja, o Sindicato Patronal mentiu em processo de inquérito policial ao imputar falsas acusações a um dirigente sindical, numa clara tentativa de assédio e intimidação do movimento sindical da construção civil.
Por outro lado, ao contrário do que se tenta fazer parecer a mídia e as alegações patronais, a violência presenciada naquela obra não partiu dos trabalhadores da construção civil. As ruas do entorno da referida obra estão, na verdade, sendo palco de uma brutal repressão policial contra trabalhadores em manifestação pacífica, com a polícia agindo de forma truculenta, utilizando-se desnecessariamente de balas de borracha e bombas sobre os homens e mulheres que por aquela via atravessam, tudo em defesa da posse supostamente ameaçada da empresa, protegida por uma força extremamente equipada contramanifestantes desarmados, violando a integridade física destes, ferindo os trabalhadores que lutam por melhores condições de trabalho.
No entanto, é preciso compreender de forma mais profunda os aspectos sociais que estão envolvidos nesta greve.
Sabe-se que a Constituição brasileira promete, na forma de direito, um salário que possa atender às necessidades básicas do trabalhador e condições adequadas de trabalho, prevendo ainda a proteção daqueles direitos que visem à melhoria de sua condição social. No entanto, o cotidiano desses trabalhadores que hoje lutam é de ver tais promessas serem descumpridas sistematicamente, sofrendo com as péssimas condições de trabalho, a má qualidade da água, da comida, do banheiro, recebendo baixos salários em troca de extenuante carga de trabalho que lhes desgasta a saúde, sofrendo com a falta de segurança no trabalho, sendo vítimas de acidentes fatais, e mais uma infinidade de violações aos seus direitos básicos.
Quando os operários da construção civil levantam juntos suas reivindicações contra tal situação, e se negam a submeter-se a quem tem a propriedade dos meios de produção, deixam de ser mera mão-de-obra e convertem-se em homens e mulheres,começando a exigir que seu trabalho não sirva somente para enriquecer os donos dos grandes e luxuosos imóveis, mas que permita aos trabalhadores viver de forma digna.
A necessidade que possui o trabalhador de, junto com seus pares, resgatar a sua humanidade, retirada pelo jugo dos interesses patronais na exploração de sua força de trabalho, se revela durante a greve. Neste momento os operários decidem proclamar que eles, como seres humanos, não foram feitos para se dobrarem às circunstâncias sócio-econômicas, mas que estas circunstâncias é que devem se dobrar a eles como seres humanos, porque o silêncio de sua parte seria reconhecer tais condições e admitir o direito da burguesia de explora-los até a última gota.
Durante a greve os operários percebem também algumas características que se repetem na relação de seu movimento com o Estado e, sobre isto, Lenin afirma algo que se pode aplicar perfeitamente a esta greve:
“O operário não conhece as leis e não convive com os funcionários, em particular os altos funcionários, razão pela qual dá, frequentemente, crédito a tudo isso. Eclode, porém, uma greve. Apresentam-se na fábrica o fiscal, o inspetor fabril, a polícia e, não raro, tropas, e então os operários percebem que infringiram a lei: a lei permite aos donos de fábricas reunir-se e tratar abertamente sobre a maneira de reduzir o salário dos operários, ao passo que os operários são tachados de delinquentes ao se colocarem todos de acordo!”.
A greve da construção civil, já em seu início, representa uma importante experiência para os operários e dá uma grande lição ao conjunto da classe, ensinando que é preciso confiar na força da resistência e organização dos trabalhadores, a única capaz de conquistar a mudança significativa de suas vidas.
*Gabryella Ruiz, Advogada do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Civil.
Fonte: www.urucum.org
Foto: Ilustração