Para Negri, não faltarão, nos próximos meses, oportunidades para articular lutas sociais europeias. Em meio a novas mobilizações, filósofo sugere mirar Espanha e Grécia, combinar autonomia com presença institucional e articular “política do comum”
Por Toni Negri e Sandro Mezzadra.*
Em uma de suas primeiras declarações após as eleições para o Parlamento Europeu, François Hollande afimou que a Europa tornou-se “ilegível”. Certamente não deve ter sido difícil, para ele, “ler” o resultado de seu partido: a derrota dos socialistas franceses foi clamorosa, assim como a dos socialistas espanhóis. Mas enquanto na Espalha a continuidade e amadurecimento dos movimentos contra a “austeridade” abriram espaço político para forças tradicionais de esquerda (Esquerda Unida, em primeiro lugar) e para a novidade significativa do Podemos, na França, como se sabe, as coisas caminharam de modo distinto.
A vitoria da Frente Nacional francesa, é, no fundo, o espelho de uma dupla incapacidade. De um lado, a dos socialistas, para gerir de modo expansivo uma crise que se torna a cada dia mais profunda, ameaçando transformar a própria França no epicentro da crise europeia. De outro, a dos movimentos sociais e da esquerda (Frente de Esquerda, em particular), para aceitar até o fundo o terreno europeu como espaço decisivo da luta. A França demonstra, antes de tudo, uma coisa: hoje, na Europa, a dimensão nacional e “soberanista” (que toda a esquerda, inclusive parte significativa dos socialistas havia defendido, lutando contra a Constituição Europeia, no referendo de 2005) é um terreno no qual apenas a direita – um pouco mais ou um pouco menos abertamente xenófoba e fascista – pode vencer.
Bem além das intenções de Hollande, em todo caso, uma certa “ilegibilidade” caracteriza hoje, de fato, a Europa. No calor da crise, já haviam se esgotado as formas pelas quais o o processo de integração europeu era “lido” e levado adiante, nas décadas anteriores. A formação progressiva de um corpo de Direito Europeu, capaz de substituir a integração política faltante, foi interrompida bruscamente pelos caminhos adotados para gerir a crise. O comando articulado em torno da autonomia do Banco Central Europeu desvinculou-se não apenas da “legitimidade” democrática mas também da máquina de produção de normas e de governança da União Europeia. Agora, o voto francês, em especial (e a dupla crise, econômica e política, da França) coloca em xeque o eixo franco-alemão, sobre o qual a integração europeia apoiava-se para construir suas próprias alquimias políticas e geografias. Imaginar que a Itália possa, deste ponto de vista, substituir a França, é francamente ridículo.
De modo geral, as eleições europeias, apesar da fragmentação dos resultados, expressam uma clara rejeição à “europa alemã” e à filosofia liberal da “austeridade”. Há tempo frisamos que as próprias elites europeias percebem os limites da gestão da crise realizada até agora: ela não define novos cenários de estabilização capitalista. Porém, esta exigência pressupõe uma consolidação do quadro político a nível continental, que não se produziu de maneira alguma. A “grande coalizão” que se prenuncia no Parlamento Europeu parte do enfraquecimento profundo dos partidos que a comporão, em particular devido aos resultados que obtiveram nos paíes do Sul do continente – os mais atingidos pela crise dos últimos anos.
A coalizão entre democratas-cristãos e social-democratas, que assumiu o governo alemão, simplesmente relança um modelo alemão já percebido, de modo difuso, como causa da crise – não como solução possível. E o crescimento do Partido Democrático na Itália, com seus efeitos na composição e correlação de forças internas ao Partido Socialista Europeu, tenderá a obscurecer a identidade “socialista”, tirando o espaço que seria necessário à dialética política necessária para uma “inovação” não apenas retórica. Mesmo que ela se produza apenas no plano de uma articulação distinta (e uma estabilização) do comando capitalista.
A atração do socialismo europeu para o campo de forças articulado pelos conservadores, a sua renúncia a se tornar intérprete político tanto das reivindicações da classe operária “tradicional” e dos “desclassados” pela crise quanto dos novos setores emergentes na composição do trabalho, é um dado que emerge com clareza da nova rodada eleitoral. Assim como adota atitude de mera gestão do que existe, quanto está no governo, a social-democracia parece incapaz de reinventar-se – mesmo quando na oposição. O crescimento da direita e das forças “eurocéticas” (além do não-comparecimento às urnas) está diretamente ligado a este eclipse da social-democracia. Ela já não parece candidata a reconstruir um tecido de mediações sociais e políticas, reclamado difusamente – repetimos – por uma parte consistente das elites capitalistas europeias.
Não excluímos a hipótese de que tais elites possam voltar-se à direita para construir as condições para uma saída da crise: não seria a primiera vez em sua história, e a continuidade do processo de integração europeia (sob perfil monetário, normativo, técnico ou de infra-estruturas) não é por si mesmo incompatível com atitudes identitárias ou “nazionalistas”. O certo é estariam reprimidas, sob égide de uma política de medo e de uma valorização do autoritarismo social, os espaços de liberdade e de luta pelo Comum, em toda a Europa. A resistência e a revolta que uma “solução” deste tipo encontraria certamente a tornam, no momento, pouco realista – mas ela permanece como possibilidade de fundo.
Ainda que o horizonte europeu seja, em certa medida, opaco e “ilegível”, é em seu interior que se definirão, nos próximos anos, os termos do confilto político e social nesta parte do mundo. A seu modo, sabem disso perfeitamente as próprias forças da direita “anti-europeia”: é outro dado que as eleições europeias fornecem. O capitalismo, consolidou, na crise dos últimos anos, sua natureza “extrativa” – em primeiro lugar, por meio de um aprofundamento dos processos de financerização. Ao mesmo tempo, e especialmente na Europa, até os observadores mainstream que celebram a volta da “estabilidade” nos mercados financeiros evidenciam o alargamento do abismo entre as dinâmicas de tais mercados e a violença que persiste nas consequências sociais da crise.
O desemprego que não baixa de dois dígitos em muitos países europeus; a ampliação e intensificação da precariedade; o disciplinamento de populações inteiras por meio da dívida; a represssão; o ataque às condições dos imigrandes; os retrocessos conservadores sobre temas cruciais como os direitos civis e a liberdade: é esta a herança da “austeridade” na Europa. Enquanto isso, no plano mundial a instabilidade e as turbulências provocadas pela cirse de hegemonia norte-americana continuam a se intensificar. As guerras nos confins da União Europeia (Ucrânia e Síria) são uma manifestação dramática do fenômeno. A crise profunda de todas as formas de governabilidadede (e de todas as tentativas de requalificação da democracia) ameaça, na Europa, traduzir-se em condições de violência generalizada, ou de guerra civil latente. Estes problemas, em todo caso, só poderão ser enfrentados na Europa, dentro do espaço continental. Certamente, não o serão nos espaços augustos dos Estados-Nações europeus!
Os limites da “austeridade” já o dissemos, tornaram-se evidentes na Europa. A reabertura de uma dinâmica salarial (o tema da elevação do salário mínimo foi assumido por parte da “Grande Coalizão” que governa a Alemanha e, na Itália, com o bônus fiscal do governo Renzi) demonstra o fenômeno. Há aqui uma oportunidade para as lutas e movimentos europeus: denunciar a mistificação desta abertura só é possível forçando seus limites, fazendo irromper na cena as novas figuras da cooperação produtiva, multiplicando as reivindicações que esgarçam os limites do “tralbalho” e agindo para que entrem em convergência, no interior de um grande movimento pela reapropriação da rizqueza social. O “sindicalismo social”, cuja discussão estimulamos no interior da rede Eruronomade, precisa ter este significado de reconstrução das bases materiais para uma política de expansão do Comum.
Um novo desenho da luta de classes começa a tomar forma. Projetá-la a nível europeu é o que pretendemos, quando falamos de um movimento constituinte capaz de romper as barreiras nacionais sem, por isso, perder o enraizamento no interior de conjunturas sociais e políticas específicas.
Não sabemos se este movimento constituinte encontrará, em nível europeu, as condições politicas para se consolidar – e, portanto, para produzir uma nova qualificação da democracia e introduzir elementos maduros de contrapoder em cada cenário de estabilização e “saída” da crise. O que vemos é que, nos países em que foi mais forte e contínuo o movimento de luta contra a “austeridade”, este movimento conseguiu incidir também nos planos eleitoral e institucional, introduzindo aí elementos significativos de contradição.
Embora em condições distintas, a afirmação do Podemos na Espanha e a vitória do Syriza na Grécia expressam precisamente a possibilidade de conjugar a consolidação de formas de auto-organização, de luta e de contrapoder em nível social, com um uso inovador dos dispositivos eleitorais e institucionais. Que fique claro: nem o Podemos, nem o Syriza são para nós “modelos”. Não excluímos, é claro, a hipótese de que, em um ou no outro caso, a oportunidade seja desperdiçada, com a volta à ideia – empobrecedora – de “representação dos movimentos”. Mas achamos oportuno sublinhar que a oportunidade se apresenta; e que foi construída por lutas e movimentos.
Trata-se, nos próximos meses, de trabalhar antes de tudo no interior destes movimentos e lutas, na perspectiva de que ganhem potência, multipliquem-se, assumam uma convergência maior no terreno europeu. Não faltarão ocasiões, no verão e outono [inverno e primavera brasileiros]. Construir uma linguagem e um imaginário comuns dos movimentos europeus significa conquistar os instrumentos necessários para determinar uma nova “legibilidade” da Europa; para discernir, na opacidade da transição em curso, a ocasião para uma política do comum.
*Para EuroNomade
Tradução: Antonio Martins
Fonte: Outras Palavras