Como a educação brasileira começou a mudar

140623-Educação2-e1403539761634Em todo o país, coletivos e escolas enxergam atraso dos métodos educacionais vigentes e constroem alternativas. É hora de mapear e articular este movimento

Por Tathyana Gouvêa.

Junho de 2013. Homens e mulheres das mais diversas idades, classes sociais e etnias nas ruas do Brasil. De Norte a Sul, de megalópoles a pequenas cidades do interior do país, as manifestações populares ganharam as ruas e a mídia brasileira. Dentre as diversas reivindicações estava a melhoria da educação.

Para entendermos tal clamor das ruas é preciso compreender que o Brasil, por muitos séculos, teve um sistema educacional para poucos. Apenas com o Manifesto dos Pioneiros, de 1932, a educação laica, pública, gratuita, obrigatória e única entrou na pauta das políticas públicas. Durante todo o século XX a luta foi para garantir a educação de todos (uma nação que na época já tinha mais de 100 milhões de pessoas). Ainda na década de 1970 as dificuldades eram grandes. Mesmo conseguindo que todos estivessem matriculados no 1º ano, a desistência e a reprovação eram altíssimas, resultando em apenas 40% de alunos matriculados no ano seguinte. O sistema foi se adequando para reter os alunos na escola: criaram-se os ciclos, a progressão automática, e outras tantas estratégias para consolidar a escola como a principal, única e oficial instituição de transmissão dos conhecimentos socialmente valorizados, demanda esta introduzida inclusive por órgãos internacionais. No final do século XX o país tinha garantido a entrada e permanência, chegando em 2006 com 98% das crianças de 7 a 14 anos na escola. Mas essa marca foi alcançada com o crescimento do número de escolas e profissionais vinculados a elas sem valorizar a cultura local, a formação dos profissionais, as adequadas condições de trabalho, etc., resultando em um ensino massificado, baseado em apostilas e provas (internas e externas). É diante desse cenário que surgem as manifestações de 2013, cujo clamor era “melhorar a qualidade”, sem direcionar essa demanda para alguma solução, sem especificar o que a população entendia por qualidade.

Se por um lado a demanda é genérica nas ruas, as diversas pessoas que já trabalham por uma melhor educação nos diversos cantos do país apareceram nesse momento como articuladores, esboçando possíveis respostas. Ainda que evidenciem ou não em suas falas e ações a correlação com as manifestações (até porque a grande maioria deles já desenvolvia seus projetos antes disso), o fato é que é possível perceber no país um novo discurso se formando em contraposição à escola convencional. Os projetos que já existiam estão hoje mais fortes e atraindo maior interesse. Novos projetos estão sendo criados e algumas redes começam a se formar e ganhar força (como a Rede Nacional de Educação Democrática), culminando, por exemplo, em um novo manifesto, intitulado “III Manifesto pela Educação” (fazendo referência aos manifestos de 32 e 59, ambos seguidos e “abafados” por golpes de Estado).

Diferentemente dos outros manifestos, este foi escrito por educadores e contesta a própria estrutura da escola. Suas proposições vão desde a comunidade de aprendizagem e o ensino integral em tempo integral até a permissão do ensino domiciliar. Este documento teve assinaturas coletadas por internet e está aberto para contínuas contribuições e debate. Foi entregue em Novembro de 2013 ao Ministério da Educação durante a primeira Conane (Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação), realizada em novembro de 2013, em Brasília.

A Conane foi um marco do movimento que vem ganhando força no Brasil por ter atraído diversas iniciativas de todo o território nacional, dando maior visibilidade a cada uma delas, fomentando também a troca de experiências e a criação de uma rede. O evento foi o resultado coletivo de uma série de iniciativas que vale a pena descrever, para exemplificar as redes que vêm se formando e como atuam.

O professor José Pacheco, da Escola da Ponte em Portugal, mudou-se para o Brasil e passou a trabalhar junto a escolas e projetos brasileiros (em 2013 chegou a fazer cerca de trezentas viagens para visitar os mais de cem projetos que acompanha pelo país). Inspirado por ele, um grupo de educadores criou em 2008 a rede “Românticos Conspiradores”. Essa rede se mobiliza principalmente pela internet, trocando informações e conteúdo, mas também realiza encontros presenciais, visando à superação do paradigma educacional vigente. Em 2012 fizeram o 3º Encontro Nacional da Rede Romântico Conspiradores. Por sua vez, o Coletivo Gaia Brasília, formado em 2012, ligado às práticas sustentáveis, e o Projeto Autonomia, criado em 2010 na Universidade de Brasília (UnB) para investigar e refletir sobre práticas educacionais inovadoras, começaram a se articular para fazer um evento em Brasília dando seguimento às atividades do Manifesto. Em 2013 ocorre ainda a chegada no Brasil de quatro europeus, motivados pelas notícias a respeito das manifestações, reunidos sob um projeto chamado “EduOnTour”. Este coletivo visava fazer um giro pelo país levantando diversas iniciativas, articulando e mobilizando a rede. Esses jovens reuniram todos esses interesses e propuseram o Conane. Além do evento, a iniciativa alimentou o mapa do Brasil no Reevo e terá ainda a produção de um documentário. A ideia de um levantamento de práticas também foi desenvolvida pelo coletivo Educ-Ação no livro “Volta ao Mundo em 13 escolas” e pelo “Caindo no Brasil”, que em breve terá um livro e um mapeamento lançados. Sobre mapeamentos é importante constar que a socióloga brasileira Helena Singer, em 1995, foi quem fez o estudo pioneiro no mundo levantando as práticas educacionais democráticas pelos 5 continentes.

Além de inúmeros coletivos que estão sendo criados, fomentando um novo olhar para a educação, as Fundações têm tido um importante papel dentro do movimento. Elas viabilizam algumas iniciativas e organizam diversos encontros para se pensar o futuro da educação. De maneira geral, atuam diante de uma abordagem tecnológica, buscando atrelar empresas de software, especialmente startups, com empresas educacionais, na tentativa de trazer inovação para a área, passando, portanto, por um redesenho da organização escolar.

É possível perceber que o movimento de repensar o modelo escolar vigente ganha força no país também em função dos conteúdos que começam a ser veiculados na grande mídia. A rede Globo e o grupo Abril têm veiculado reportagens, documentários, entrevistas, etc. em que escolas não convencionais são apresentadas ao grande público.

Com uma abrangência menor, porém com uma comunicação mais efetiva e profunda, está uma série de filmes que tratam sobre um novo olhar para a educação e a escola, como o documentário argentino de grande repercussão no Brasil “Educação Proibida” (2012), ou ainda “Sementes do nosso quintal” (2012) e “Quando Sinto que Já Sei”, que será lançado este ano. Esses e outros filmes que tratam dessa temática, com destaque à infância, foram apresentados na Ciranda de Filmes em 2014, estimulando o olhar de muitos paulistas a uma nova e possível educação.

As práticas alternativas à escola convencional sempre existiram no país e no mundo, algumas sufocadas por movimentos ditatoriais, como os Colégios Vocacionais da década de 1960 em São Paulo, outras que desde que iniciaram suas atividades seguem se sustentando e se tornam cada vez mais estruturadas e de interesse para a sociedade, como as escolas Waldorf. A diferença que evidenciamos agora é a convergência dos discursos para a superação da escola convencional. Educadores, jornalistas, empresários e governo reconhecem, ainda que por razões diversas, o fracasso do sistema de ensino brasileiro e do modelo escolar vigente e partem, em certo grau juntos, para desenhar algo novo e que ainda é bastante incerto.

O foco na criança, no respeito ao seu ritmo e aos seus interesses, em uma escola que dialogue mais com a comunidade, com conteúdos ligados diretamente à realidade das crianças e jovens, com um espaço flexível, aberto e dinâmico, parece ser uma tendência. Mas em alguns importantes pontos essa discussão ainda não chegou, provavelmente por serem temas divergentes e não aglutinadores, em um movimento que ainda está se estruturando. Algumas dessas questões seriam: o papel do professor, o currículo, as formas de avaliação, a sustentação de projetos de caráter pessoal, o repasse de verba pública, a coexistência de modelos diante de uma rede pública estruturada, baseada em vestibular e avaliações externas, dentre outras. De qualquer maneira, é notável o avanço que o movimento teve em menos de um ano das manifestações no Brasil. Que os debates continuem e as possibilidades floresçam!

Fonte: Outras Palavras.

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