Por Viviane Tavares.
Relatório apresenta legados dos mundiais no Brasil, África do Sul e Alemanha, aponta os verdadeiros interesses e interessados pela Copa do Mundo no país do futebol.
No final do mês de maio foi publicado o relatório ‘Um olhar sobre os legados dos mundiais no Brasil, África do Sul e Alemanha’ da Fundação Heinrich Böll – Brasil, no qual abordou o legado deixado em países que receberam a Copa do Mundo em anos anteriores e como o Brasil se preparou para este mundial. O relatório não só aponta a estratégia da FIFA e do empresariado no jogo de disputa de interesses em receber o evento como também divulga como o poder e o financiamento público vão, aos poucos e em números exorbitantes, financiando este acontecimento.
No caso do Brasil, o investimento chegou atualmente a € 8,5 bilhões – o equivalente a R$ 26 bilhões – dos quais 85% saem dos cofres públicos, segundo o relatório. O investimento público tinha a justificativa de gerar empregos e uma injeção na economia brasileira. Os números previstos eram de que a Copa injetaria R$ 142 bilhões na economia brasileira e geraria 3,63 milhões de empregos por ano entre 2010 e 2014, além de R$ 63 bilhões de renda para a população. A realidade, no entanto, como mostra o organizador da edição Dawid Danilo Bartelt é outra. “Teixeira prometeu uma Copa do Mundo com amplos recursos privados, o que ao longo dos sete anos de preparação para o evento não se efetivou. O mesmo ocorreu com a previsão de gastos, que era de R$ 5 bilhões. O valor, no início de 2014, já beira os R$ 30 bilhões”, explica o diretor no relatório.
O relatório vai além e aponta que mesmo sendo uma entidade sem fins lucrativos, a FIFA divulgou em seu balanço de 2012 um lucro de R$ 178 milhões, além de uma reserva financeira de R$ 2,6 bilhões. A organização da Copa do Mundo no Brasil deverá garantir um faturamento de R$ 9,7 bilhões. Na África do Sul essa quantia foi de R$ 7 bilhões em 2010, e, na Alemanha, de R$ 4,4 bilhões em 2006.
Para que o país conseguisse o direito de sediar o torneio e alcançar tal lucratividade, a FIFA exigiu, por exemplo, que houvesse uma isenção de impostos nos contratos. Estima-se que só com isso, a federação economizasse cerca de R$ 1 bilhão. A lei da Copa (12663/12), que determina essa e outras regalias para a FIFA diz ainda que deve ser do governo a garantia com segurança, saúde e vigilância sanitária, além de, caso não consiga realizar o evento, será responsabilizada por quaisquer danos que vierem a acontecer.
O documento ainda contesta os legados socioeconômicos, que, segundo o texto, apresentam uma série de problemas metodológicos. “As obras de infraestrutura viária são obras específicas para a Copa ou teriam sido realizadas de qualquer forma? Os gastos elevados comprometem outros itens dos orçamentos municipais, estaduais ou federal ou são compensados, por exemplo, através de investimentos privados? Como computar formas indiretas de financiamento, como isenções fiscais (das quais a FIFA goza quase que plenamente) ou subsídios?”, indaga.
Quem lucra?
Uma das organizadoras da publicação e coordenadora de programa da Fundação Heinrich Böll, na área de Direitos Humanos, Marilene de Paula, em entrevista para EPSJV/Fiocruz explica que a empreiteiras são os grandes motivadoras de eventos como este, principalmente, por conta das obras que essas movimentações envolvem. “O Governo lucra também em sua imagem, que aproveita para mostrar para o cenário internacional que ele é um país capaz de fazer esse tipo de evento, que é um país voltado para os negócios, para o investimento, um país eficiente. E no caso do Brasil, várias coisas se mesclam com o interesse da Copa e Olimpíadas”, analisa.
Somente a Rede Globo, maior canal de TV brasileiro e detentor dos direitos de exibição dos jogos ao lado da TV Bandeirantes, aponta o relatório, vai faturar R$ 1,4 bilhão com a comercialização de cotas de patrocínio da transmissão da Copa do Mundo 2014. “E a emissora ainda vai somar mais R$ 1,1 bilhão em cotas com outro pacote, o “Futebol 2014?, que mostra os jogos dos campeonatos estaduais e nacionais. Considerando que na Copa da África do Sul a Rede Globo conseguiu R$ 490 milhões, com seis cotas de R$ 81,8 milhões cada, o torneio no Brasil representa um aumento de quase 200% em seu faturamento”, mostra o documento.
Pesquisa realizada pelo Instituto Mais Democracia e lembrada no relatório apresenta ainda que os contratos públicos para obras relacionadas à Copa do Mundo e às Olimpíadas tem indícios da existência de um cartel formado pelas construtoras Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Correa e OAS em mais de 20 empreendimentos que estão sendo realizados no estado do Rio de Janeiro. A parceria com grandes empreiteiras, eventos, e governo vem sendo estreitada, como aponta do estudo, desde a eleição da presidente e Dilma Rousseff, que gastou R$176,5 milhões em sua campanha. Naquela ocasião, entre os doadores estavam o Banco Itaú e a cervejaria Ambev, dois patrocinadores oficiais da Copa do Mundo e também da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), além de duas construtoras ligadas diretamente às obras da Copa, a Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez.
Quem paga?
De acordo com “Um olhar sobre os legados dos mundiais no Brasil, África do Sul e Alemanha” os maiores financiadores do evento no país foram os bancos públicos, em especial o BNDES e a Caixa Econômica Federal. “A iniciativa privada entrou com muito pouco, e é inevitável que para financiar isso, tire de outro lugar”, analisou Marilene. Dos três eixos principais de investimento que são desenvolvimento turístico, estádios e mobilidade urbana, o que concentrou maior verba foi o de mobilidade, com previsão de gastos de R$ 4,470 bilhões. “Porém, apenas 59% desse valor (R$ 2,671 bilhões) foi realmente investido. Enquanto isso, no eixo estádio, já foram gastos R$ 4,049 bilhões, o que equivale a 97,7% do total previsto”, explica o relatório.
Somente o estádio Mario Filho, mais conhecido como Maracanã, recebeu R$ 1,5 bilhão, e a gestão do estádio já foi repassada para a iniciativa privada. O contrato prevê o pagamento de 33 parcelas anuais de R$ 5,8 milhões, chegando ao total de R$ 181,5 milhões, o que significa pouco mais de 15% de todo o dinheiro público gasto no estádio.
Como uma das principais contrapartidas por parte da União, a área de segurança pública para os megaeventos receberá mais de R$ 2 bilhões em investimentos federais: “R$ 1,17 bilhão para as Copas do Mundo e das Confederações, além de R$ 1,15 bilhões para os Jogos Olímpicos. Quase R$ 50 milhões já foram gastos com armamento “não-letal” para a Copa das Confederações e Copa do Mundo”, informa o texto que completa: “Mesmo com todo esse investimento pesado na área de segurança para o Mundial, o governo ainda terá que arcar com o custo da segurança particular nos estádios. A FIFA exige que a segurança dentro dos estádios seja feita por empresas privadas. Estima-se que 25 mil vigilantes sejam convocados para trabalhar nas 12 arenas”.
O verdadeiro legado
Com o chamado corredor Copa e Olimpíadas no Rio de Janeiro, as Unidades de Polícias Pacificadoras (UPP), foram implantadas de maneira violenta e hoje contam um efetivo de mais 9 mil homens. “Após os cinco anos de sua implementação, essa política se destaca também como um processo de reordenamento étnico-social da cidade para os megaeventos. No momento são 37 unidades espalhadas pela cidade. A maioria em áreas turísticas: na Zona Sul, onde fica instalado grande parte do setor hoteleiro; na Zona Norte, próximo a equipamentos esportivos – no entorno do Estádio do Maracanã; e especula-se que novas unidades serão instaladas em vias de acessos à cidade, como no conjunto de favelas da Maré, um dos acessos ao Aeroporto Internacional Tom Jobim (Galeão)”, informa o texto.
Marilene aponta como um dos principais legados negativos a remoção. Como informa o dossiê, a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop) estima que 250 mil pessoas estejam passando por processo de remoção em todo o Brasil. “Os legados positivos, no final das contas, foram muito pequenos. Se você comparar o que foi investido e o que foi deixado, é muito pouco para conta que veio”, analisa. “Os processos das remoções, como é o caso do Rio de Janeiro, você tem um deslocamento de cerca de 20 mil famílias, que foram afastadas, algumas com cerca de 40 quilômetros. Agora você teve pessoas que foram realocadas em locais próximos ou menos distantes do que haviam falado antes, mas isso se deve de uma luta dos movimentos, sem dúvida”, explicou a coordenadora.
A organização da Copa do Mundo no Brasil também traz em seu conjunto os acidentes de trabalho. De acordo com dados oficiais já foram seis pessoas mortas decorrentes de trabalhso relacionados à Copa. Três dos seis mortos foram trabalhadores contratados pela Andrade Gutierrez. “As repetidas mortes em obras para a Copa do Mundo no Brasil revelam que precarização do trabalho e graves violações de direitos estão diretamente relacionadas aos espetáculos de ponta do capitalismo mundial, em obras feitas pelas maiores construtoras do país, contrapondo a imagem que se tenta construir através de grandes eventos. Nas obras do Mundial de 2010, na África do Sul, dois trabalhadores morreram. No Qatar, sede do Mundial de 2022, a Anistia Internacional responsabilizou a FIFA por trabalho escravo”, informou o relatório.
Para Marilene, as realidades de legados negativos da Copa são muitas. “Em Cuiabá, o projeto do VLT, que era um projeto para a Copa do Mundo, não foi realizado. Os estádios que foram feitos em Cuiabá e Manaus que após a Copa não terão público suficiente para nas arenas em estes tamanhos. Os campeonatos são muitos precários ainda”, pontua e completa: “Existem cidades que foram contempladas com determinadas melhorias, como a mobilidade, embora venha a custas de remoções, de processos violentos”, explica.
O aumento da exploração sexual também deve ser levado em conta, aponta a coordenadora da Fundação organizadora do relatório. Segundo estimativa da Associação das Prostitutas do Ceará (APROCE), cerca de 3.500 mulheres estão em situação de prostituição em Fortaleza e os grandes eventos contribuem para o aumento do turismo sexual no circuito dos balneários e adjacências das cidades-sede, de acordo com dados que constam na pesquisa apresentada. As cidades de Salvador (BA), Natal (RN) e Fortaleza (CE) são as que mais tem intensificada a prostituição.
Também relacionados à Copa estão sendo analisados no Senado o projeto de lei 728/2011, que determina a proibição de greves durante o período dos jogos, além do AI5 da democracia, de nº 499/2013, que prevê pena de até 30 anos para quem “provocar ou infudir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física, à saúde ou à privação de liberdade de pessoa”.
Marilene indica que a Copa na verdade foi a “cereja do bolo”. “Nas manifestações do ano passado, a Copa do Mundo era apenas uma das pautas dentro do acúmulo de descontentamento. É muito vergonhoso abrir o jornal e ver o que está acontecendo com essas obras que não terminam, quanto de dinheiro que vem sendo investido. A sensação é de que estamos sendo lesados. Por isso é fácil entender o resultado da pesquisa publicada recentemente que aponta que mais de 40% dos brasileiros não querem a Copa”, reflete.
*Viviane Tavares – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
Fonte: EcoDebate