Circula com insistência a ilusão de que os religiosos teriam um padrão de moralidade mais elevado. A vida e a História desmentem essa hipótese
Por Jacques Gruman.
Como eu, formou-se em química. Em Turim, na Itália, graduou-se com distinção e louvor. O detalhe é que, no diploma, há a menção: “De raça judia”. Vigoravam, naquele 1941 distante, as leis raciais da Itália fascista, e Primo Lévi só conseguiu um emprego clandestino, que mal dava para se sustentar. Envolve-se com a resistência e é preso no final de 1943. Enviado a Auschwitz, seu destino era a morte certa. Auschwitz foi o maior campo de extermínio da Europa, onde cerca de 1,5 milhão de pessoas, a maioria judeus, foram assassinadas com requintes de crueldade. A qualificação científica salvou-lhe a vida: os nazistas precisavam de gente para trabalhar no pequeno laboratório do campo. Lévi é um dos sobreviventes quando, em janeiro de 1945, o Exército Vermelho liberta os últimos e escassos prisioneiros. A experiência em Auschwitz torna Lévi um memorialista obsessivo. Era preciso narrar o indizível, a dissolução da fronteira entre bestas e homens, o horror. Durante décadas, até seu suicídio em 1987, escreveu uma obra decisiva sobre uma das páginas mais negras da humanidade. Refletindo sobre o que passara, disse: “Devo dizer que a experiência de Auschwitz, para mim, foi de tal ordem que varreu qualquer resto de educação religiosa que também tive (…) Há Auschwitz, logo não pode haver Deus. Não encontro solução para o dilema. Busco-a, mas não a encontro”.
A rigor, poderia parar por aqui. Não encontro argumento mais forte para afirmar a inexistência de Deus. Fanáticos religiosos ainda tentam identificar razões para a omissão divina frente ao assassinato indiscriminado de milhões de pessoas, lembrando que os desígnios da entidade suprema são insondáveis e o julgamento da divindade certamente é correto (ela, afinal, é infalível). Uma criança com deficiência intelectual não acreditaria neste absurdo, de resto ofensivo à memória dos que foram trucidados. Sem sutileza, transferem para as vítimas a culpa por seu martírio. É impossível acreditar num Deus justo, acolhedor e amoroso, um Pai protetor. Abro o jornal ao acaso. Leio a história de Taís Cristina Martins. Por motivo banal, foi apedrejada até a morte em Foz do Iguaçu. Logo ao lado, detalhes do linchamento de Fabiane Maria de Jesus, assassinada depois de circular uma falsa acusação pela internet. Brutalidades como essas rodam o planeta aos milhões, sem interferência de qualquer Justiça divina. Que Juiz seria esse, que condena sem direito a defesa ? Que Profeta seria esse, que se conforma com a miséria e cruza os braços mesmo quando seus filhos estão sendo dizimados ?
Resta uma arma poderosa ao alcance de todos os oprimidos da Terra: a ironia. Viajo de Turim a Estocolmo. Em 1978, a Academia sueca está reunida para entregar o prêmio Nobel de Literatura a um judeuzinho polonês, radicado nos Estados Unidos. Na presença ilustre do rei da Suécia, Isaac Bashevis Singer fez um breve discurso, explicando as razões que o levavam a escrever em ídish, um idioma em avançado estado de extinção. Entre elas, uma crença na ressurreição (que ele não tinha). Quando o Messias chegasse, milhões de judeus que liam e falavam ídish ressurgiriam da Morte e correriam à livraria mais próxima ou à banca de jornais, perguntando: Quais são as novidades literárias ? Neste momento, a obra de Singer saciaria sua fome intelectual e afetiva. Gozador, aquele Isaac. Acho que ele sabia perfeitamente que não existe eternidade, na concepção dos religiosos. Melhor dizendo: quando ouço uma Polonaise de Chopin, uma Fuga de Bach, um quarteto de cordas de Schubert ou um choro de Nazareth, eu os ressuscito. Eles são momentaneamente libertados do exílio orgânico e entram numa espécie de cadeia da eternidade. Enquanto existir sensibilidade musical, os gênios serão eternos.
Circula com insistência a ilusão de que os religiosos teriam um padrão de moralidade mais elevado. A fé seria uma espécie de certificado de boa conduta, uma vez que assentada em leis e regras de suposta inspiração divina, portanto superior. A vida e a História desmentem, peremptoriamente, essa hipótese. Nem quero entrar no mérito das incontáveis guerras insufladas e justificadas por religiosos, em nome de Deus, nas perseguições sádicas movidas por intolerância doutrinária, no obscurantismo incentivado por dogmas. Fico na espuma que flutua na nossa rotina. Em 2008, estive em Israel. No primeiro dia, abri o jornal e, cacilda !, me senti em casa. Parecia uma versão da antiga Luta Democrática, jornaleco que, dizia-se, espirraria sangue se apertado. No meio de notícias sobre guerra entre facções da máfia russa e o assassinato de uma criança pelo padrasto, corpo desovado num rio, um registro interessante. O líder do partido religioso Shas, que representa a numerosa comunidade sefaradita religiosa, acabava de sair da prisão. Isso mesmo, o guru espiritual pegara uma cana por crime de corrupção. Sem grande surpresa, declarava pretender a prefeitura de Jerusalém. Um Jader Barbalho de barba e roupa preta. Escândalos de pedofilia, enriquecimento ilícito e corrupção viraram arroz de festa em muitos arraiais religiosos de moral pretensamente inatacável. Extorquir gente pobre, sob promessa de milagres, se enquadra em qual categoria de moralidade? Repressão sexual e preconceito formal contra mulheres acabam liberando a libido clerical de forma violenta. Durante décadas, internatos de órfãos e crianças abandonadas por pais solteiros, no Reino Unido, viraram reservatórios para abusos sexuais e agressões criminosas. Adianta pedir perdão ? Quem vai devolver a dignidade de tantas vítimas? O ovo da serpente já foi exterminado ? Às vezes, dá vontade de repetir um velho mantra do padre Jean Meslier, de tom docemente anarquista: Eu gostaria que o último rei fosse estrangulado com as tripas do último padre. Aqui, rei e padre são metáforas do poder mundano e da opressão religiosa.
Semana que vem concluo esta pequena viagem pela descrença. A minha, bem entendido.
Fonte: Carta Maior.