Por Fernanda Canofre dos Santos. O dia 14 de abril de 1972 mudou a História uruguaia. O Brasil já completava oito anos de regime militar, mas no país vizinho a ditadura ainda não havia se instalado oficialmente. Ainda assim, a repressão à guerrilha urbana e o cerceamento de liberdades civis já estavam em plena atividade. No final dos anos 1960, havia se formado dentro do governo o “Esquadrão da Morte”, organização paramilitar de direita dedicada a caçar membros do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros (MLN-T). Também conhecido como Comandos Caza Tupamaros e Defensa Armada Nacionalista(DAN), durante anos, o Esquadrão promoveu torturas, atentados e assassinatos de militantes sob a proteção do Estado. Até que o dia em que o MLN resolveu contestar.
O 14 de abril foi a data do operativo de justiça para os guerrilheiros uruguaios. Quatro réus foram condenados no tribunal tupamaro: o subcomissário Oscar Delega, o agente Carlos Leites, o capitão Ernesto Motto e o subsecretario do Ministério do Interior, um dos idealizadores do Esquadrão, Armando Acosta y Lara. Quatro operações foram organizadas para execução das sentenças. A Samuel Blixen, por uma falha de um companheiro que não conseguiu atirar, coube o disparo contra Acosta y Lara. Vinte e oito anos depois, Blixen definiria o 14 de abril como uma “emboscada”. Em sete meses, a estrutura da guerrilha tupamara foi desarticulada. Nem o MLN – que deu às Forças Armadas a desculpa para instaurar de vez o aparelho repressivo – nem os parlamentares – que votaram o estado de guerra interno – perceberam que naquele momento se instalava nas margens do Prata o terrorismo de Estado.
Em 2007, quando lançava um livro, Blixen caiu em outra emboscada durante um programa de televisão ao vivo. Em meio as perguntas, o entrevistador disparou: “E foi você que matou Acosta y Lara, não?”. A imprensa uruguaia reproduziu por dias a fio manchetes com “confissão” e “assassino”. Samuel Blixen não é homem de confissões. Ele simplesmente assume suas histórias. E já o tinha feito com relação ao episódio Acosta y Lara, de sua maneira. Na biografia homônima sobre o líder tupamaro Raúl Sendic, reservou uma nota de rodapé para declarar: “como é notório, tive uma participação decisiva nas ações militares de 14 de abril, concretamente na execução de um dos chefes do Esquadrão da Morte, o ex-subsecretário do Ministério do Interior, Armando Acosta y Lara. Por essa ação fui processado e condenado”. De fato, por aquela ação, passou treze anos na prisão – de 1972 a 1985 – compartilhando tortura e solidão com centenas de outros companheiros.
Hoje, aos 70 anos, Samuel Blixen é um tupamaro de cabelos brancos, fala rápida, que se divide entre as tarefas de pai, professor universitário na Universidade da República e jornalista. Quando saiu da prisão, fundou o semanário Brecha, referência do jornalismo investigativo no Uruguai, onde desde então escreve sobre direitos humanos, política e o período da ditadura militar. Autor de dezenas de livros, entre eles “El sueño del Pepe: José Mujica y el Uruguay del futuro”, é um dos tupamaros mais críticos ao governo do companheiro de MLN. É um raro homem de esquerda com visões sóbrias sobre a política no país eleito como terra da utopia pela opinião internacional. Na sede de Brecha, em uma sala decorada com recortes antigos do jornal, atrás de uma mesa de madeira, Samuel Blixen não deixa nenhuma pergunta sem resposta.
Sul21 – Como tu te tornaste um tupamaro?
Samuel Blixen – Ainda jovem, comecei a trabalhar na imprensa com quinze anos e rapidamente me filiei ao sindicato de jornalistas. Através dele conheci o movimento sindical do Uruguai, que era fantástico naquele tempo – vivia uma grande transformação, uma grande mobilização, era um período muito fermentador. Foi um período em que se conseguiu a unificação do movimento sindical, por exemplo, e se chegou a um plano onde o movimento sindical se converteu em uma espécie de partido político. Aí conheci companheiros, aprendi as realidades e, obviamente, tomei decisões. E nestas decisões…Eu começo a tomar contato com o MLN quando o MLN ainda não era público, mas já conhecia os companheiros – sobretudo aqueles que estavam no movimento sindical, que eram os companheiros que estavam armando o aparato clandestino. Naquele momento não era uma guerrilha, era outra coisa.
Sul21 – Então foi como um passo natural a ser tomado?
SB – Um passo natural. Penso que sim. Eu não sei porque isso também, sabe, talvez por influência das leituras, dos companheiros mais velhos, mas tinha um pouco de rejeição aos comunistas, principalmente pelo que acontecia na União Soviética. Os socialistas, talvez por uma postura muito juvenil e radical eram todos mencheviques ou não sei o que. Não me atraía nenhuma das opções políticas legais. Em compensação, tinha uma grande afinidade com companheiros que também estavam nos aparatos políticos legais, mas que iam formando isso [o MLN]. Além disso, fui me vinculando ainda mais ao movimento pela terra – o Movimiento de los Cañeros. Porque havia…Lembre-se que em 1962 já estava envolvido com os problemas dos cañeros, ajudava como jornalista, escrevia sobre tudo o que acontecia com os cañeros, então daí também vinha outra via de identificação.
Sul21 – Foi aí que conheceste Raúl Sendic?
SB – Não. Na verdade, conheci primeiro, porque era um operário gráfico, era um militante excepcional, muito dedicado, Amódio Pérez. Nós éramos colegas – eu e Amódio – nos jornais diários. Era uma época em que os trabalhadores dos diários tínhamos grandes conflitos, então, junto com Amódio terminamos com os sindicatos diferentes – tínhamos um Sindicato de Jornalistas, um Sindicato de Operários Gráficos e um Sindicato de vendedores de jornais– e nós acabamos com essas fronteiras e fizemos uma União dos Diários. Então, Amodio que era operário gráfico, insatisfeito com a condição interna de onde estava, e havia no jornal onde eu trabalhava outro companheiro que foi fundador do MLN, entre os dois, me recrutaram.
Sul21 – Tivestes participação em uma das mais emblemáticas ações tupamaras, o 14 de abril de 1972. Em 2007, voltou às páginas da imprensa uruguaia o fato de que terias admitido ser o autor do disparo que matou Acosta y Lara.
SB – Isso é mentira, não é verdade que admiti em 2007. A história é diferente. Eu admiti que participei na operação de execução de Acosta y Lara muito antes. O que aconteceu foi que em 2007, eu havia acabado de publicar um livro e me convidaram para falar sobre o livro, e com uma forma muito pouco ética, o jornalista se virou e disse: “E tu mataste Acosta y Lara, não?”. Assim. Então, eu pensei, muito rapidamente, disse: “Está errado”. Mas eu se eu não respondesse poderia virar qualquer outra coisa, então completei: “Sim, fui eu”. No dia seguinte saiu como se eu tivesse confessado.
Quando fui preso em 1972 os militares já haviam me acusado por isso, eles tinham todos os elementos da minha participação, e em 1985, quando fui liberado, eu fui um dos 50 militantes não-anistiados. Perdão, olha que machismo, 50 mais as mulheres, éramos 66 – haviam 66 militantes do MLN que não foram anistiados porque tinham delitos de sangue. Então, em 1985 eu fui reprocessado. O que a Justiça fez foi eliminar os processos da Justiça Militar por serem inconstitucionais e designar juízes para que nos julgassem outra vez. Foi muito simples, porque já estava toda a história. Cheguei um dia diante do juiz: “como vai doutor, como está?”. Ele: “a lei me diz que tenho de investigar vocês. Você matou Acosta y Lara?”. “Sim.”. “Bem. Obrigado”. E pronto. O MLN, nesse momento decidiu que seria responsável por seus feitos, então não correspondia andar por aí negando o que havíamos feito. Todos que tínhamos delitos de sangue chegamos e dissemos “sim”. A não ser aqueles que estavam sendo acusados por coisas que não haviam cometido.
Sul21 – Por que a repercussão desse fato, tanto tempo depois, então?
SB- Sempre me perguntaram isso, o que acontece é que nesse momento a pergunta foi feita na televisão. E foi sem riscos, depois os grupos de direita caíram em cima: “Reconhece!”. Mas que eu reconhecia, todo mundo já sabia. Eu contava os episódios, tudo o que havia acontecido, quando fazíamos as primeiras mateadas [forma de reunião política do MLN pós-ditadura, que mais tarde veio a originar o MPP – Movimento de Participação Popular] e explicávamos o porquê de ser Acosta y Lara e o que era o Esquadrão da Morte. Isso nunca esteve oculto. Já o episódio de 2007 foi uma manobra jornalística. Nesse ano estávamos voltando a discutir as questões de terrorismo de Estado – nós falávamos dos militares assassinos e torturadores – então, quando me perguntaram se matei Acosta y Lara, sim matei.
Sul21 – E te arrependes?
SB – Não. Quando te fazem essas perguntas só para te expor, para fazer sensacionalismo, não serve. Eu, em outras instâncias públicas, já havia explicado minha participação nisso e a analisei politicamente, está inclusive no livro. Aliás, o livro Sendic não é anterior a isso? Eu no livro digo que matei Acosta y Lara. Eu o escrevi porque esse episódio gerou depois um problema político. Eles o usam como um fato solto. Eu sempre digo, a execução de Acosta y Lara me parecia correta, mas o valor que ganhou no momento gerou um problema, uma reação de repressão que nos prejudicou. Desse ponto de vista, foi uma operação equivocada.
Sul21 – Inclusive muitos tupamaros falam do 14 de abril como uma estratégia equivocada, que depois se tornou em um momento inflexivo para o movimento.
SB – A operação envolvendo Acosta y Lara e os demais, eram atos de justiça. Eles estavam operando como paramilitares. Se tivéssemos todas as cartas sobre a mesa e tivéssemos previsto que os militares estavam preparando qualquer golpe para sair, eu te diria que, por mais que fosse um ato de justiça, teria de ser suspenso. Porque não era um momento oportuno. Se soubéssemos como estavam esperando, não o teríamos feito de nenhuma maneira porque teríamos de estar preparados para essa reação. A informação andava por aí, mas nós não sabíamos. Quando tomamos a decisão imaginávamos que ia acontecer todo o contrário. Imaginávamos que ia ocorrer um impacto político tão grande que o governo ia cambalear e que iam começar a negociar politicamente conosco. Porque as Atas Tupamaras [espécie de panfleto explicando as táticas e ideias do grupo] já haviam sido enviadas ao Parlamento, eles estavam por dentro do assunto. O que foi que aconteceu? Todos os políticos calaram a boca e os militares deram o golpe. Então, desse ponto de vista, é de uma responsabilidade tremenda o que fizemos.
Sul21 – Este ano, no Brasil, completamos 50 anos do golpe militar, mas só há pouco começamos a falar e buscar o que aconteceu de fato no passado com a criação da Comissão da Verdade. Qual a importância de recuperar a memória? Acreditas que isso pode ajudar a alcançar justiça de alguma maneira, depois de tanto tempo?
SB – São duas coisas distintas. Uma coisa é a memória e outra a justiça…
Sul21 – O que é feito da memória.
Exato. Memória não é justiça. Por que é importante resgatar a memória? Porque tu tens uma história que está com buracos, com recortes, e tu não compreendes o que aconteceu. Não compreendes muitas coisas, te faltam elementos. Então, há uma obrigação de completar a história, de descobri-la e preencher esses buracos. Para todo mundo. Muitas vezes quando você começa a resgatá-la aparece “fulanito de tal”, que era presidente da república e que na verdade era um assassino. Então, hoje, com a memória resgatada podes reconstituir a ideia que você tem sobre fulano. O juízo que tens sobre as Forças Armadas, sobre os partidos políticos, etc. Mas também pode haver um juízo adverso das guerrilhas, por exemplo. Dar toda a informação, isso é resgatar a memória. O problema é que a memória está mutilada porque o terrorismo de Estado tratou de ocultar muitas coisas. O terrorismo de Estado não te diz porque mataram fulano, nem como o mataram, nem quando, nem onde o enterraram. Como nessa guerrilha Ara…Como é?
Sul21 – Araguaia.
SB – Isso. Araguaia. Ainda se está descobrindo sobre os locais de enterros e tudo mais. Não são duas coisas idênticas. A guerrilha não somava assassinatos. Então, quando um indivíduo vê as coisas que faltam, passa a juntar informações, vê o terrorismo de Estado. O conjunto te permite superar aspectos políticos – essas coisas ainda têm conteúdo político, hoje, no Uruguai, não se pode falar sobre o que aconteceu em 1970, porque os personagens seguem vivos. Porque está Pepe Mujica, porque estou eu, porque está Sanguinetti [duas vezes presidente do Uruguai: 1985-1990 e 1995-2000]. Sanguinetti vai dizer que nós somos assassinos, nós vamos dizer que Sanguinetti é um ditador. E vamos seguir na mesma, sem a perspectiva histórica. Não se pode sentar tranquilamente, como os alemães podem sentar para falar sobre o que foi o nazismo, o que fez meu pai ou meu avô. Vendo tudo de uma perspectiva histórica. Aqui não e no Brasil, tampouco. Isso são aspectos políticos porque além de tudo, os militares ainda estão aí. Alguns dos responsáveis seguem aí. E porque há interesses que criaram a necessidade de mentir, de ocultar. Isso é a memória. Se tu resgatas a memória, estás dando as pessoas a possibilidade de conhecer seu passado, de conhecer suas verdadeiras raízes. Não necessariamente isso é justiça. Porque você pode conhecer a verdade, mas quem administra a justiça é um poder de Estado. O poder de Estado pode fazer justiça. Se tu resgatas a memória, a injustiça se faz mais evidente. Porque os juízes podem negar, mas colocamos sobre a mesa todos os arquivos, fica tudo em evidência.
Sul21 – No Uruguai há muitos livros que trabalham com a memória, inclusive escritos pelos personagens que viveram o período, pelos próprios tupamaros. Qual a melhor maneira de lidar com o passado e conviver com a memória?
SB – Eu creio que sempre seja um benefício. Acho que nós não temos um conflito psicológico com nosso passado. O que eu sinto, e escrevi um livro assim, é que tratamos de resgatar atitudes de companheiros que são anônimos. É tão importante o Pepe Mujica quanto aquele companheiro que fez qualquer outra coisa, e temos que contar isso. Essas histórias dão outra dimensão humana do que foi a militância tupamara, o que não quer dizer que não existam críticas. Podes conhecer episódios de militantes de base que podem te comover e, não obstante, dizer: “para mim, os tupamaros se equivocaram”. Nós não temos problema em lidar. A questão é que o conhecimento dos fatos, do que passou durante a ditadura e no terrorismo de Estado – mais do que com os tupamaros porque os tupamaros estavam presos. O que fizeram os militares nos quartéis? Sabemos isso porque conseguiram resgatar as histórias através do trabalho das próprias vítimas e seus familiares. É um trabalho muito difícil. Há casos onde tens cinquenta testemunhos e só ao final chegas a verdade. Há juízes que fizeram isso. Por exemplo, Mariana Motta o fez com o caso do general Barneys, onde morreu um sorveteiro. A história é terrível.
Barneys é um general que se aposentou há pouco tempo e que foi chefe da Inteligência. Em março de 1973, quando começava a ditadura, ele era tenente no quartel de Colônia. Um dia fizeram um “arrastão” em um povoado, Carmelo, e levaram a todos. A todos os esquerdistas – não tupamaros – aqueles que mais ou menos eram frenteamplistas ou que se diziam de esquerda. Levaram cerca de 50 pessoas, entre eles, o sorveteiro do povoado, um tipo muito querido, que não era jovem. Levaram e torturam a todos no quartel, e às mulheres, estupraram-nas. Os ruídos da violação, o pranto das mulheres, todos podiam escutar. Esse sorveteiro, de alguma maneira, não conseguiu resistir, e acabou enlouquecendo. Em pouco tempo, ele começou a gritar, xingá-los, pedindo para parar com aquilo. Os militares o agarraram e o levaram para a tortura e ali ele morreu. Um de seus torturadores era o general Barneys. Para ver como é hipócrita a sociedade, inclusive quando se fala de Barneys, não se fala de como aconteceram as coisas.
A investigação judicial é uma coisa maravilhosa porque é muito meticulosa. Primeiro que ninguém falava disso, as mulheres não haviam falado sobre suas violações, por uma razão de vergonha, no final acabaram contando tudo. Os testemunhos são tão crus…Mas, além disso, cada um conta coisas que se coincidem de forma que é impossível que seja mentira. Isso foi assim. Hoje temos a convicção de que a maioria das mulheres que estiveram presas foram violadas. Com alguma forma de tortura foram violadas. Ou seja, elas seguiram vivendo com essa carga, vítima da violação por muitos anos. Agora, recém começamos a saber disso e a justiça não faz nada. Há uma denúncia de 23 mulheres que decidiram contar o que aconteceu e ainda estão esperando que chamem os “tipos”.
Sul21 – Em março, no Brasil, uma minoria tentou reeditar a Marcha da Família, saindo às ruas com cartazes que pediam a volta do regime militar. Além disso, um deputado federal, Jair Bolsonaro, conseguiu que seu pedido para falar por meia hora na tribuna da Câmara “desmistificando o período militar” fosse aprovado. Depois, a autorização acabou sendo revogada pelo presidente da casa. Para alguém que viveu um período militar, o que te parece isso?
SB – Não há desmistificação porque não há injustiça com respeito aos regimes militares. Isso é evidente. Quanto mais conheces, mais te dás conta de que os julgamentos para condená-los foram poucos. Eu, como jornalista, quando comecei a escrever aqui [no semanário Brecha], em 1985, eu falava de ditadura. Porém, no Uruguai, na televisão, não se falava de ditadura, diziam “regime de exceção” ou “processo cívico-militar”. Então, se começou a falar em ditadura. Depois, começaram a falar dos responsáveis pelos delitos de lesa-humanidade. De assassinos. De sequestradores de crianças. De violadores de mulheres. A medida que vais conhecendo mais, vais vendo que ainda te faltam contar sobre uma infinidade de coisas. Quando eu leio minhas reportagens de 1989, digo “que suave que era a coisa toda!” (risos), porque era o que tínhamos naquele momento. Não há nada para desmistificar, porque quanto mais coisas souberes, mais duro será o julgamento. Para que as pessoas tenham verdadeira consciência do que foi, os jornalistas tem que falar, os escritores, quem seja. Ainda não temos nenhuma literatura sobre a ditadura, sobre o terrorismo de Estado.
Sul21 – No Uruguai?
SB – No Uruguai. Salvo um livro que escreveu Eduardo Galeano, em 1973 – mesmo que pareça mentira – há um ou dois. O que eu quero dizer é que não é assunto de criação literária. É só jornalismo e pesquisa jornalística ou acadêmica. Creio que nós temos obrigação de contar cada vez com mais detalhes o que aconteceu, porque é a única forma de fazer com que as pessoas tomem consciência. Todos os anos temos um Júlio María Sanguinetti que diz que “foram os tupamaros que provocaram a ditadura”, e tens que voltar ao início para discutir o que aconteceu. De todas as formas, crias um debate sobre isso. Provavelmente esse senhor – Bolsonaro – ocuparia sua meia hora e depois haveria outras pessoas, no Parlamento e fora, que o confrontariam com os fatos. Uma das coisas que tenta o terrorismo de Estado é que se fale o menos possível, que se encerre a página.
Sul21 – Durante a clandestinidade, os tupamaros tinham relações com a resistência brasileira?
SB – Sim, claro.
Sul21 – Muitos brasileiros, como Leonel Brizola, viveram em exílio no Uruguai.
SB – Eles [os demais militantes do MLN] tinham contato, claro. Eu não. O começo da coisa toda foi o golpe de Estado no Brasil, em 1964. O golpe do Brasil acentuou o processo da doutrina de soberania nacional do Exército. O acelerou! Os atentados ocorridos em 1971, na campanha eleitoral quando surge o Frente [Amplio, coligação partidária de esquerda a qual pertence o atual presidente, José Mujica], todos os explosivos usados eram trazidos do Brasil e os traziam em maletas automáticas, em missões diplomáticas. Houve um envolvimento muito grande do Brasil. E isso se sabia e se denunciava. Sei que Sendic tinha contatos. Tinha contato inclusive com Julião [Francisco Julião, considerado criador das Ligas Camponesas brasileiras, ainda na década de 1940]. Sendic entrava em Uruguaiana, se metia no Brasil e tinha contatos com o movimento campesino. Outras vezes ia pela fronteira com Artigas, onde estava o movimento dos cañeros. Não sei precisar detalhes, mas sei que com Brizola também tinha contatos.
Sul21 – E com João Goulart, o presidente deposto que também viveu aqui parte de seus dias de exílio? E que hoje se sabe que foi assassinado pela Operação Condor.
SB – Também. O piloto do avião de João Goulart transladou Sendic várias vezes. Não posso te afirmar que Goulart soubesse disso (risos), talvez preferisse não saber porque estava exilado. Em uma das ocasiões, foi esse avião que levou Sendic a Paissandú para o aniversário de Raulito [filho do líder tupamaro, hoje candidato a senador pelo Frente Amplio].
Sul21 – Recentemente, Mujica falou sobre a crise de representatividade da democracia em entrevista ao jornal O Globo, dizendo que apesar de simpatizar com os protestos atuais, eles não tinham levado a parte alguma, que até agora não conseguiram construir nada. Como vês essa ideia?
SB – Ele tem um discurso com respeito ao consumo que é interessante e as pessoas o aplaudem. Aqui ele disse que há gente que tem dois ou três empregos para consumir mais. É uma crítica dura. Ele não necessita dinheiro porque tem uma vida muito, muito austera. Fica mais fácil, não tem filhos, sua mulher também trabalha, tem um ranchinho onde nem todo mundo viveria – isso é certo – é uma vida austera, reconheço. Mas há deputados de seu partido que dizem que vivem com vinte mil pesos e não pode ser. 50% dos homens uruguaios estão divorciados e tem de pagar pensão a suas ex-mulheres, além de estarem casados outra vez, obrigações que não tem Pepe Mujica. Então, dizer que as pessoas tem mais empregos apenas para consumir mais, me indigna. A vida é cara no Uruguai, para ter uma vida mais ou menos, sem nada de luxo, te exige muito dinheiro. Um trabalhador, um operário trabalha em dois empregos porque precisa deste dinheiro. Se Mujica dobrasse o salário que recebemos, poderíamos deixar de ter dois empregos. Não porque precisamos comprar sapatos Nike ou sei lá o que, mas porque a vida é cara. Podem existir exceções, gente que realmente é obcecada pelo consumo – o consumismo é um problema – mas daí a limitar toda uma população a isso…
Sul21 – Creio que Mujica se referia também a que estes movimentos – desde a Primavera Árabe até protestos recentes no Brasil e na Europa – não encontraram o caminho do que fazer depois das ruas. Enquanto que no caso do MLN-T, através da criação do Movimento de Participação Popular (MPP), conseguiram chegar ao poder legislativo e executivo.
SB – O MLN não chegou ao poder. O que chegou ao poder foi o MPP que era uma expressão política do MLN, mas que é outra coisa. Por outro lado, podes dizer que no governo há muitos tupamaros. Mas os tupamaros não estão no governo. O problema é que nós, os tupamaros, somos como uma espécie de casta hindu, não podemos deixar de ser tupamaros por mais que queiramos. Somos tupamaros. Há muitos tupamaros que seguem vivendo suas vidas, que não estão no governo. Confundir governo e tupamaros é um equívoco. Este é um governo de coalisão, do Frente Amplio, onde o MPP e muitos tupamaros tem peso importante. Só.
Sul21 – Este ano completa-se 10 anos de governo de Frente Amplio. Para ti, que já foste uma pessoa próxima a Mujica, mas que agora se tornou um dos críticos de sua administração, qual a tua avaliação?
SB – Bom, uma coisa são os dez anos do governo frenteamplistas e outra coisa é o papel de Mujica, nos cinco anos na presidência. Creio que Mujica parecia uma alternativa – e assim o tomamos – de retificação do rumo que vinha tomando ao final o governo de Tabaré Vázquez. Para dizer em termos curtos, não necessariamente, mas Mujica era a figura que ia aprofundar as mudanças. Era mais ou menos assim, “na sua primeira experiência Tabaré fez isso, mas deixou de fazer aquilo, houve problemas, e aí vem o Pepe e vai aprofundar as mudanças”. Além disso fez propostas como: cinco mil hectares para limite da propriedade de terra, impostos para os grandes proprietários, aspiração de que todos os jovens conseguissem chegar ao ensino superior, levar laboratórios científicos ao interior…Havia uma quantidade de propostas do Pepe que significavam aprofundar as mudanças. Nos cinco anos, Pepe não aprofundou nada. O que ele fez foi administrar. Há um tipo de administração que se faz de óculos escuros. É certo que pessoas pobres deixaram a pobreza, que melhorou o salário dos trabalhadores, mas tudo isso é fruto de uma administração que faz com que o capitalismo se torne mais eficiente. Mas não muda nada na estrutura de poder. Vês como se tratam os capitais estrangeiros, a questão da soja, o tema de Aratirí [projeto de mineração a céu aberto, para extração de ferro, alvo de muitos protestos no país], e vês que estão administrando o país e que essa administração vai favorecendo cada vez mais os grupos de poder. Isso te leva a ser crítico.
Sul21 – E a imagem internacional de Mujica é bastante positiva, inclusive com o Uruguai sendo eleito “país do ano” pela The Economist…
SB – A imagem de Pepe no exterior é incrível! Está baseada em sua experiência de vida, mas também está baseada no fato de que ele com seu estilo, muito ladino, de alguma maneira renegando a violência do MLN, em auto-crítica, faz com que o mundo o veja como um fenômeno. Além disso é um tipo que foi sempre consequente com seus princípios, esteve treze anos preso e ainda vive em austeridade tremenda. É um homem culto, conquistou leis como da maconha, do aborto…e agora, com isso dos presos de Guantánamo! [Mujica começou a negociar asilo político a presos políticos da base estadunidense de Guantánamo]. Isso vai dar lhe créditos políticos que no exterior é maravilhoso!
Sul21 – E tu concordas com o asilo político aos prisioneiros de Guantánamo?
SB – Sim, me parece bom. Acho que Pepe está fazendo uma boa coisa, principalmente depois que ele explicou que não quer nada em troca e que esta é uma questão humanitária.
Sul21 – Em várias ocasiões de tensões recentes na América Latina – os protestos do início do ano na Venezuela, o conflito entre as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o governo colombiano – Mujica tem se oferecido como mediador. O que te parece esse papel?
SB- Acho que pediria a Mujica que fosse mais contundente em seu apoio a Maduro e em sua denúncia do que está acontecendo na Venezuela, mas creio que até aqui ele teve uma política internacional muito hábil. É uma política de não muito compromisso, de dar os passos sabiamente, mas – exceto pela Argentina – tem levado bem. Talvez eu quisesse ver uma política externa mais comprometida, mas também…
Sul21 – Ainda assim, Uruguai tem se oferecido para o papel de mediador com frequência, enquanto países como Brasil demoram para se manifestar ou assumir uma posição.
SB – Verdade, mas aí também acredito que há uma jogada, uma escolha de papéis. No caso do Paraguai, quando retiraram Lugo tivemos uma posição mais forte. Já no caso de Maduro, creio que o Uruguai teve uma participação muito morna – os elementos de conspiração da direita, de ingerência exterior são evidentes – requeria uma postura muito mais firme, mas não sei se o fez politicamente para deixar portas abertas [o ex-presidente Lula declarou que sugeriria o nome de Mujica para presidência da Unasul].
Sul21 – No Brasil, o governo de Dilma Roussef, também uma ex-guerrilheira, sofre muitas críticas e cobranças na área de direitos humanos. Como é isso no Uruguai?
SB – O governo de Mujica fez uma coisa importante, conseguiu a jornada de oito horas aos trabalhadores rurais – eles tinham condições de quase exploração subumana. Uma conquista importante. Outra coisa importante no Uruguai são os conselhos de salários. O governo convoca trabalhadores e patrões para que discutam os acordos de salários e tudo isso. São discussões prolongadas, onde o governo, depois de um ano de debates, se reserva ao direito de decidir se as partes não chegam a um acordo. Creio que há cerca de 60 conselhos de salários, de todos os tipos de atividades, e todos chegaram a acordos, exceto um: dos trabalhadores rurais. Os estanceiros, grandes proprietários de terras, não chegavam a um acordo. Os trabalhadores pediam aumento de 180%, iam trabalhar tendo de levar seu próprio cavalo, arreios, outras coisas e era uma inversão muito grande a que chegavam os números. O que é um absurdo, como se em uma fábrica o operário tivesse de levar o torno! O governo acabou ficando do lado dos trabalhadores.
Sul21 – Como alguém que está no jornalismo desde 1959, acreditas que há uma crise do jornalismo, hoje?
SB – Pelo contrário! Não sei se amanhã – porque tampouco sou especialista nisso – os jornais de papel serão substituídos por meios digitais, o que sei é que a palavra escrita nunca será substituída. Com a televisão, tens uma atitude passiva diante dela. Ela te dá imagens, áudio, toda a informação e tu a digeres. Como está estruturado por clipes, uma coisa rápida que passa – o escândalo de ontem, já foi substituído por outro – tu não tens espaço de reflexão para aquilo que te dão. Coisa que não acontece com a escrita. Quanto te sentas para ler, necessitas de um tempo para recorrer a linha, pensar o que quer dizer cada uma dessas palavras que estão impressas e esse ritmo, que tu mesmo podes ditar, te faz mais reflexivo. A escrita é necessária para compreender. Provavelmente é uma batalha desigual, porque na televisão tudo é um espetáculo! Porém, a reflexão e a análise estão na palavra impressa, não há saída. Não há crise de jornalismo. O que pode haver é crise de jornalistas!
Foto: Fernanda Canofre dos Santos
Fonte: SUL 21