Nossa primeira boa surpresa foi em Strasbourg, olhamos para o piano e simplesmente pensamos que era do Café ao lado: foi quando um jovem rapaz chegou e começou a tocar que notamos que o instrumento estava ali à disposição de todos.
Por Sally Satler.
Se existe um excelente lugar para observar o cotidiano europeu é uma estação de trem. Obrigatória em quase todas as cidades, ‘gentes’ de todos os lugares do planeta, com suas diversas fisionomias e trajes, se entrecruzam entre o burburinho incompreensível de tantos idiomas falados. Mas, no meio disso tudo, é possível estabelecer uma linguagem comum a todos: para além do ir e vir de milhares de pessoas, nas ‘Gare’, ‘Hauptbanhof’ ou ‘Central Station’ existem pianos públicos e livres, à espera de alguém para tocá-los. Não raro, você está naquela apreensão, procurando o local de embarque ou a saída da estação e, de repente, esse sentimento se dissipa na harmonia das notas musicais, tocadas por um viajante anônimo.
Nossa primeira boa surpresa foi em Strasbourg, olhamos para o piano e simplesmente pensamos que era do Café ao lado: foi quando um jovem rapaz chegou e começou a tocar que notamos que o instrumento estava ali à disposição de todos. Como em Londres, quando vi um garoto de uns 10 anos tocando com uma habilidade de dar inveja.
Talvez a experiência mais bela tenha acontecido num dia bem cedo, por volta das 7h da manhã, na Gare du Nord em Paris, a caminho de Amsterdam. A maioria dos passageiros de pé, com suas malas ou mochilas, olhavam em silêncio, quase estáticos, para o imenso painel de horários e destinos. Concreto, vidro, ferro e a pressa das pessoas aumentavam o frio da manhã. Até que a melodia de Pour Elise, de Beethoven, tocada no piano por algum viajante, curou a ansiedade e me fez lembrar uma cena do filme “Cidade dos Anjos”, com os anjos a ouvir a música do nascer do sol. A fotografia ficou só na memória, pois o nosso trem chegava naquele instante.
Aqui em Paris também é comum ver músicos com seus violões, violinos, acordeões nas estações de metrô, nas paradas ou até mesmo dentro dos vagões. Na estação Saint-Michel, saindo do vagão e subindo as escadas rolantes, encontramos em alguns sábados o haitiano Dikerson Eveillard. Cantor com uma voz vibrante e inconfundível, ele também impressiona pela interação com o público. Não foi uma, mas várias vezes que, voltando de algum lugar, escutamos sua voz e violão. Não há como não ficar ali parada para ouvir ao menos 4 ou 5 músicas; muitos vão parando, cantando junto e alguns até dançam, num pequeno espaço dentro daquela estação, em meio aos passageiros, por vezes apressados, mas nunca incomodados pelo aglomero em volta do artista. Na primeira vez, lembro-me de subir aquelas escadas ao som de Hallelujah, numa entonação mais que contagiante, e a sensação de não querer que aquele momento terminasse.
Esbarrar-se com a arte, ser surpreendido por ela (e não somente ir ao seu encontro), é o que também nos fascina. São de momentos assim que precisamos para alimentar o espírito. Esses músicos viajantes, nômades e anônimos em estações de trem e metrô, também nos trazem, nem que por um breve instante, um fôlego de humanidade.
Fonte: Sally Satler blog