Entre os muros de casa

A violência fatal contra a mulher – o feminicídio –, cometida principalmente pelos parceiros da vítima, mostra que a percepção de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher” precisa ser cada vez mais combatida

Por Isadora Rupp.

mujer

Há pouco menos de um mês, o caso da estudante Paola Natália Cardoso, morta a tiros no meio da rua no bairro Alto da XV pelo namorado, o policial civil Napoleão Seki Júnior (que tentou se matar e morreu no hospital no começo desse mês) chocou a cidade e repercutiu em todo o país. Naquele 24 de abril, entretanto, Paola foi um dos rostos de uma triste estatística: hoje, 15 mulheres em média são mortas no Brasil todos os dias por causas violentas – ou uma a cada uma hora e meia.

Na última quinta-feira, assistimos à condenação do ex-cirurgião plástico Farah Jorge Farah, que ficará 16 anos na prisão por matar e esquartejar a paciente e amante Maria do Carmo Alves, em 2003. Os exemplos são inúmeros e perpassam décadas: em 1976, a socialite Ângela Diniz foi assassinada pelo companheiro Doca Street numa casa de praia em Búzios (RJ), crime amplamente divulgado pela imprensa.

No ano passado, também em Curitiba, a dona de uma panificadora no bairro Mercês, Bernadete Dulla Zella, de 43 anos, foi sequestrada e morta pelo ex-marido, que a ameaçava constantemente após a separação. Mesmo destino de Gravelina Terezinha Lemes, de São Carlos (SP), em 1997: com 14 pontos na cabeça após uma agressão do companheiro, ela recorreu à delegacia. Foi orientada a não voltar para casa, mas não tinha para onde ir. No dia seguinte, seu corpo foi encontrado com golpes de marreta. A filha, de um ano e meio, ainda sugava os seios da mãe.

Todos os exemplos acima mostram a expressão máxima da violência contra a mulher, e que a afirmativa “o machismo mata” é verdadeira e palpável. O estudo Feminicídios: a Violência Fatal contra a Mulher, divulgado no ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que, de 2001 a 2011, ocorreram 50 mil mortes de mulheres por conflito de gênero no Brasil, ou seja: pelo fato de serem mulheres. Os crimes, diz o levantamento, são perpetrados por homens, principalmente companheiros e ex-companheiros, e decorrem de situações de abuso no domicílio, ameaças ou intimidação.

A Organização das Nações Unidas (ONU) classifica a violência contra a mulher no mundo como uma pandemia, e dados do órgão mostram que metade de todas as mulheres assassinadas no mundo são mortas pelo parceiro ou ex-parceiro.

Por outro lado, o assunto é mais debatido, pesquisado e divulgado. Além da Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, o fortalecimento do movimento feminista e as pesquisas de diferentes instituições colocaram o assunto na pauta da imprensa e da sociedade nos últimos anos. Levantamentos também mostram que há uma ampla aprovação de medidas de proteção. A pesquisa Percepções dos Homens sobre a Violência contra a Mulher, do Instituto Avon/Data Popular (2013), aponta que 92% dos entrevistados são favoráveis à Lei.

No mesmo estudo, a contradição: questionados sobre como a mulher deve reagir quando sofre violência do marido, o levantamento apontou que 36% dos homens disseram que “antes de qualquer atitude”, a mulher deve primeiro “conversar com o parceiro”. O que escancara o problema central apontado pelos especialistas entrevistados pelo Caderno G Ideias: enquanto não se mudar a mentalidade de que essa situação não pode permanecer no âmbito privado, as estatísticas continuarão as mesmas.

Mentalidade

É o velho “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. A polêmica pesquisa do Ipea divulgada esse ano, que trocou o porcentual na pergunta de que a mulher teria responsabilidade em caso de estupro, mostra, por exemplo, que 82% dos entrevistados concordam com esse clichê. “Então, a pessoa pode viver numa vizinhança em que há violência doméstica em quase todas as casas, e ainda achar que aquele é um problema individual e, como tal, deve ser resolvido apenas em família”, pontua a professora de Literatura em Língua Inglesa na Universidade Federal do Ceará e autora do blog Escreva Lola Escreva, Lola Aronovich.

Em Curitiba, um levantamento encomendado pela Secretaria Municipal Extraordinária da Mulher (ativa há um ano), realizada pelo Instituto Bonilha e divulgada em março, mostra que os curitibanos mais discordam do que concordam com essa máxima: 37% discordam totalmente da afirmativa, enquanto 29% concordam.

Quebrar essa lógica é a determinação da secretária municipal da mulher, Roseli Isidoro, que abraçou como causa principal o enfrentamento à violência, pautada em reuniões com diversos movimentos sociais. “Foi uma exigência da sociedade”, conta. Além de medidas efetivas, como a Patrulha Maria da Penha, lançada em março (que vem acompanhando mulheres em situação de risco, em conjunto com a Guarda Municipal), Roseli aposta no debate. “Tem muitos homens que rejeitam a violência, mas não sabem que xingar uma mulher, fazer um comentário jocoso, é tão grave quanto bater”, frisa.

Cultura

Para a socióloga e doutora em Antropologia Social Marília Gomes de Carvalho, professora e pesquisadora do grupo de Gênero e Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), a violência de gênero acontece em um universo social onde predomina a concepção de que o homem é dono do corpo da mulher. “Ele acha que há propriedade sobre o jeito que ela pensa, se veste, anda, se comporta, como se relaciona. E a partir dessa visão, ele se sente no direito de fazer desse corpo o que bem entende.”

O levantamento do Instituto Avon prova que essa mentalidade ainda é maioria. Na pesquisa, 69% dos homens entrevistados acham que a mulher não deve sair sem o marido, e 46% que elas não devem usar roupas justas ou decotadas. Ainda: 88% consideram “inaceitável” que a mulher não mantenha a casa em ordem.

Esse pensamento que divide o que cabe ao homem ou à mulher gera uma tolerância social da violência, frisa a presidente da Comissão de Estudos à Violência de Gênero da seccional Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Sandra Lia Leda

Bazzo Barwinski. “Isso reforça e reproduz estereótipos de gênero. Quando você estabelece que a mulher deve agir de forma diferente, a sociedade permanecerá intolerante às mudanças.”

Luta

A secretária Roseli Isidoro acredita que é necessário discutir o assunto amplamente, e em várias instituições, inclusive na Igreja, que, segundo ela, também “não pode se furtar desse debate”. “Quantas vezes durante a homilia vamos nos deparar com mulheres que não têm coragem de confessar ao padre que é vítima de violência? É preciso que as igrejas pactuem conosco, para desmistificar a ideia de que será um pecado se ela denunciar ou se separar do marido violento. Se a gente não pactuar um compromisso do poder público, sociedade e igrejas, vamos perder essa batalha.”

A “evolução” da agressão

Começa de maneira discreta, sem deixar marcas físicas – um xingamento, uma desqualificação em relação à mulher. Depois, a agressão verbal vem acompanhada de empurrões, até evoluir para agressões físicas. Geralmente, essas são as fases que antecedem o feminicídio.

“A literatura nos diz que a agressão começa de forma sutil. Existem casos isolados do homem que mata a mulher repentinamente, mas são raros”, explica a psicóloga e professora do mestrado em Piscologia Forense da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), Maria da Graça Saldanha Padilha.

A mulher agredida também tem como característica ser mais isolada socialmente, já que agressor, aos poucos, vai a afastando da vida social, dos amigos, da família e da Igreja, ou seja, de todos os locais onde ela poderia buscar socorro. “O medo das agressões e do futuro, principalmente quando a mulher tem filhos, são alguns fatores que a seguram numa relação agressiva”, salienta Maria.

Coordenadora das Dele­­­gacias da Mulher do Paraná, a delegada Eunice Vieira Bonome, que trabalha há 20 anos com casos de violência contra a mulher, percebe que as agredidas têm uma grande dependência emocional do parceiro. Por isso, muitas não conseguem sair da situação. “Não é uma questão de ser um ‘amor doente’. Mas ela se sente responsável em zelar pela família.”

“Monstro”

Quando um caso de feminicídio ocorre, o homem que mata geralmente é visto como um desequilibrado, que cometeu o ato “fora da razão”. “Os homens que matam não são monstros psicopatas, mas aprenderam que só se pode resolver conflitos por meio da violência física. São homens que aprenderam que suas mulheres são sua propriedade, e que é melhor vê-las mortas do que com outro homem. Esses homens têm a noção mais atrasada acerca da masculinidade”, salienta a professora de Literatura da Universidade Federal do Ceará, e autora do blog Escreva Lola Escreva, Lola Aronovich.

Lei

A análise de crimes de feminicídio e suas resoluções ainda partem do ponto de vista masculino, acredita a presidente da Comissão de Estudos à Violência de Gênero da seccional Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Sandra Lia Leda Bazzo Barwinski. “O exemplo é o crime passional. Ainda se acredita e se fala no crime passional, algo que não se concebe mais numa sociedade civilizada. Justificar quem mata por amor, que amor é esse? Um slogan feminista da década de 1960 já dizia: ‘quem ama, não mata.’ E continuamos dizendo na legislação que sim.”

De acordo com Sandra, a legislação prevê, ainda, redução de pena quando entende que o homem agiu em violenta emoção, privado da racionalidade. “Não pode ser concebível, é construção de uma cultura jurídica machista. E isso é muito sério, pois o Direito acaba norteando todo o entendimento da sociedade.”

Fonte: Gazeta do Povo

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