Por Elaine Tavares.
A Universidade Federal de Santa Catarina viveu nesse dia 15 de maio o que poderia ser mais um pequeno evento dentro da greve dos trabalhadores. Mas não foi. A atividade que reuniu os técnico-administrativos em educação no chamado “enterro das 40 horas” configurou-se numa viragem política que certamente terá consequências importantes no longo prazo. Fruto de um sistemático trabalho de estudo sobre a realidade da UFSC, a nova geração de trabalhadores superou o sindicato conservador e impôs o seu ritmo no processo da greve. Por conta disso, e apesar de todos os entraves colocados por boa parte dos dirigentes sindicais, os trabalhadores construíram uma proposta para a implantação das 30 horas e realizaram um ato de entrega à reitora, no qual se insurgiu como protagonista essa nova geração. Foi um momento histórico.
A batalha dos trabalhadores da UFSC pela construção de uma universidade diferente e pela garantia de um espaço digno onde trabalhar não é de hoje. Desde a criação da universidade nos anos 60, digladiam-se dois grupos bastante diferenciados. Um, ligado ao poder instituído, liderou a organização dos trabalhadores durante décadas, sustentando sucessivas direções conservadoras e atuando internamente com práticas assistencialistas. Outro, preocupado com a soberania dos trabalhadores e com uma universidade verdadeiramente ligada aos interesses populares, sempre fez oposição e batalhou por melhores condições de trabalho bem como por uma universidade igualmente soberana. Esses dois grupos travaram grandes batalhas e uma delas foi justamente a criação do sindicato, entidade necessária nos anos 80, quando o país saía da longa e violenta ditadura militar.
Com o processo de democratização do país, uma nova geração de trabalhadores começou a impor outro ritmo às lutas internas e foi nesse rastro que nasceu o Movimento Alternativa Independente, aglutinando pessoas que queriam bem mais do que a assistência, que buscavam espaços de luta capazes de avançar na briga por direitos e democracia. Esse movimento, imortalizado como MAI, provocou mudanças radicais na UFSC, varrendo o atraso e o conservadorismo. A partir dele nasceu o sindicato e com essa força organizativa, os trabalhadores realizaram memoráveis greves e foram capazes de garantir novos direitos. Era a força de uma juventude que chegava cheia de desejos de mudança.
O tempo passou e o lado conservador voltou, conquistando o espaço sindical a partir da mesma velha aliança com a administração, típica dos primeiros anos da UFSC. Foi preciso uma nova leva de pessoas, recém ingressadas no serviço público, no início dos anos 90, para dar novo fôlego às lutas. Foi assim que, depois de um difícil processo de reorganização, em 1998 o sindicato foi outra vez recuperado por um grupo de trabalhadores que retomava os princípios do MAI, acrescentando novas propostas. Foi esse grupo que enfrentou o último mandato de FHC e o primeiro mandato de Lula.
Com o desmantelamento e domesticação do mundo sindical pós eleição de Luis Inácio, também na UFSC as divisas entre grupos ficaram confusas. Aqueles que por décadas tinham sido apontados como esquerda, faziam a crítica à Lula. E os que sempre estiveram no campo da direita apoiavam o governo. Foi um tempo de muita confusão e muito bem aproveitado pelos grupos conservadores que, novamente, assumiram o controle do sindicato, amortecendo as lutas. E esse é o perfil atual. Um sindicato fraco, domesticado pelas forças governistas, incapaz de levantar a categoria nas lutas necessárias.
Foi esse mesmo sindicato que se mostrou bastante tímido quando, na greve de 2012, os trabalhadores, já oxigenados por outra nova geração que chegara a partir de 2004, entraram de cabeça na luta pelas 30 horas, iniciada anos antes pelo grupo de esquerda que então comandava o sindicato. Todas as iniciativas para avançar nas 30 horas eram problematizadas e desconstruídas. Foi preciso que a base passasse por cima da direção e garantisse a proposta de criação de um grupo, envolvendo TAEs e reitoria, para fazer um diagnóstico da UFSC e verificar a possibilidade das 30 horas, que permitiria à universidade ficar bem mais tempo aberta para toda a comunidade.
Uma assembleia histórica aprovou o grupo de trabalho e a proposta foi levada à reitoria, que aceitou o desafio. Finda a greve, o grupo foi criado, chamado de Reorganiza UFSC, e durante um ano inteiro esquadrinhou a universidade em todos os seus setores. Ao final, o relatório, entregue em maio de 2013, apontava que a universidade tinha todas as condições de abrir suas portas durante todo o dia e à noite, ficando facultado, assim, os turnos de seis horas aos trabalhadores, conforme reza a lei.
O relatório foi entregue à reitora Roselane Neckel, apesar de ao longo do processo ela ter começado a se esquivar da proposta, alegando entraves na lei. Tanto que a entrega teve de ser forçada, com um visível desconforto por parte da administração, que não estava disposta a apoiar o resultado do trabalho. Tudo isso foi fortalecendo o grupo de novos trabalhadores que, aliados aos antigos lutadores da UFSC, foram tomando as rédeas da luta. O governo Lula deixou uma herança grande de direitos perdidos e à essa nova geração caberia uma nova e renhida peleia.
A batalha pelas 30 horas foi dando visibilidade ao grupo que, em função de todo o trabalho de organização, acabou tendo uma vitória estrondosa nas eleições para o Conselho Universitário, quebrando um ciclo de décadas, uma vez que, historicamente, por conta da ação das administrações, as cadeiras no CUn quase sempre foram ocupadas pelos representantes dos grupos conservadores. Em 2013, pela primeira vez, as seis vagas estavam na mão das forças progressistas e de esquerda, numa dobradinha entre a nova e velha geração, aliadas pelas mesmas propostas.
Assim, não é de admirar que esse grupo tenha crescido e se fortalecido ao longo do tempo. A ação no Conselho Universitário, transparente, democrática e responsável, tem sido reconhecida pela maioria dos trabalhadores, que pode acompanhar passo a passo as sessões e ver como cada conselheiro se comporta e o que defende. Tem sido o trabalho duro, mas que vem garantindo o respeito da categoria.
Agora, na greve, a despeito de parte da direção do sindicato, que inclusive não quis que uma resolução das 30 horas fosse construída, os trabalhadores avançam. Venceram o conservadorismo da entidade sindical e garantiram por maioria a criação de uma resolução que implanta os turnos de seis horas na UFSC. Fruto do trabalho do grupo Reorganiza e das dezenas de discussões acontecidas na greve que paralisou os trabalhos desde março. E foi esse documento que os trabalhadores entregaram nesse dia 15 à reitora Roselane Neckel, com o pedido de que seja encaminhado ao Conselho Universitário para a aprovação. E foi esse momento de entrega que mostrou um ponto de viragem, outra vez, na UFSC, com uma nova geração assumindo a direção da luta.
O cerimonial da entrega foi disputado na unha dentro do comando de greve. Porque, mais uma vez, parte da direção sindical claudicou. Mas, como se contrapor à luta por melhorias? Foi necessário recuar e entregar o momento. E assim se fez. Todo o processo foi construído pela nova geração – com o apoio dos velhos lutadores – que inclusive comandou a assembleia. Foram criados simbolismos, místicas, alegorias e assim, realizou-se um belo funeral das 40 horas.
A reitora foi convidada, mas não desceu. Foi preciso que os trabalhadores ocupassem o gabinete e exigissem ser ouvidos. Muito a contragosto, a reitora veio até o saguão para receber o documento da resolução. “Não recebi o convite porque vocês fecharam a reitoria”, disse, buscando, na crítica ao ato realizado, desculpas para sua ausência na assembleia. A resolução foi entregue com pompa. A morte, à frente de um caixão com as 40 horas, entrou, soberana. O caixão foi aberto e, nele, os trabalhadores colocaram tudo o que queriam enterrar: as 40 horas, o assédio moral, a falta de democracia. Foi um momento mágico. Depois, uma trabalhadora leu um texto que dava conta da luta mundial pelas 30 horas, reivindicação histórica dos trabalhadores. E, por fim, o documento foi entregue por uma trabalhadora mãe, simbolizando assim, o nascimento de uma nova era: a das 30 horas na UFSC.
Com cruzes e bandeiras, os trabalhadores da UFSC acompanharam o ato, aos gritos de “30 horas, já!” E, ao final, depois da entrega e de um discurso evasivo da reitora – que insiste em dizer que a lei não permite as 30 horas – todo mundo saiu em passeata dando a volta na reitoria, com a morte, o caixão, as bandeiras, a Banda Parei, num espécie de carnaval. Luta e alegria. Batalha e festa, porque, afinal, é só a força do trabalhador unido que muda a realidade.
Agora cabe à administração da UFSC encaminhar o debate sobre as 30 horas no CUN. Em greve ou não, os trabalhadores estarão atentos e em luta. Há um vento fresco soprando no campus. Os velhos lutadores, das duas últimas gerações, protagonistas de tantas lutas e conquistas, seguem firmes na batalha por outra universidade, capaz de garantir conhecimento comprometido com a maioria e espaço digno aos trabalhadores, mas sabem que esta é uma hora de passar o bastão. Não há nada a temer. A UFSC está em boas mãos.