Por Míriam Santini de Abreu.
A Comunidade Quilombola São Roque realizou neste sábado, dia 26 de abril, um ato simbólico de ocupação de uma terra que era para ser dela, mas na qual ela não pode trabalhar. Os moradores, que vivem na localidade de Pedra Branca, em Praia Grande, sul do estado, roçaram o terreno e neste domingo semeiam hortaliças nele. Os dois gestos são uma resposta à pressão do Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBio), que assinou Termo de Compromisso com a comunidade, mas voltou atrás no ano passado. Com o impasse, os moradores não podem plantar ali para se alimentar, sob pena de cometer crime ambiental.
Cerca de 36% do território quilombola, já delimitado pelo Incra, está sobreposto ao dos Parques Nacionais de Aparados da Serra e da Serra Geral. Por isso é preciso regulamentar o uso e o manejo da terra e dos recursos naturais. É isso que as famílias tentam fazer desde a década passada. Já são 18 Termos de Compromisso, um interminável vai-e-vem, e nenhuma resposta concreta para garantir a subsistência das famílias. É um processo de dar esperança para depois tirá-la. Essa dificuldade levou ao outro gesto feito neste sábado, o de devolução de sementes ao governo.
Há três anos a comunidade, através de um edital do governo federal, recebeu 200 sacas de sementes de milho e feijão. Mas a validade venceu, porque as famílias foram proibidas de plantar. Os grãos sem aproveitamento, deixados ontem na frente do Posto de Informações e Controle do ICMBio, também simbolizam a resistência às tentativas de expulsar as famílias do lugar.
A situação parecia se resolver no início de 2013, quando a presidência do ICMBio assinou mais um Termo de Compromisso com a comunidade. Mas, em 20 de maio, o presidente do órgão suspendeu o processo e alegou não reconhecer a sua própria assinatura no documento. O fato levou o Ministério Público Federal a abrir uma Ação de Execução (nº 5009890-88.2013.404.7204) contra o ICMBio para fazer valer o documento. Mas o Instituto mantém sua posição e continua a criminalizar os moradores. A expectativa agora é pelo julgamento do caso, que está na subseção da Justiça Federal em Criciúma.
Área mínima
Representantes de quatro comunidades remanescentes de quilombos e lideranças do movimento popular e sindical apoiaram ontem a luta das cerca de 30 famílias que vivem na Pedra Branca, em São Roque. Depois de um almoço comunitário, todos foram até a área pleiteada no Termo de Compromisso descumprido pelo ICMBio, de 41,5 hectares. Isso representa 0,0001% da área total dos dois parques e permitiria o plantio e a garantia de subsistência. Mesmo assim, não podem usá-la.
No Ato feito depois da roça do terreno, os moradores esclareceram que ali, muitos anos atrás, já se plantava para subsistência. A mata com o tempo se regenerou até o chamado estágio médio, e a lei diz que, sendo até esse estágio, as comunidades tradicionais assim reconhecidas podem fazer o manejo. Era isso que o Termo, aceito e agora negado pelo ICMBio, garantia.
Maria de Lourdes Mina, da coordenação estadual do Movimento Negro Unificado (MNU), que desde os anos 2000 atua pelos direitos da comunidade, lembrou que há mais de um século, por sua forma de lidar com a natureza, a comunidade de São Roque é que preserva aquele lugar. Os dois parques só foram criados depois, a partir dos anos 1970. “Essa área que foi definida para uso dos quilombolas no Termo de Compromisso só se regenerou porque a comunidade respeitou a lei, e agora os seus direitos não são reconhecidos”, disse Mina.
Sem direito de plantar
A comunidade está fazendo um Abaixo-Assinado contra a posição intransigente do ICMBio, por entender que o rigor usado contra os quilombolas não se aplica aos grandes e médios proprietários da região e nem, de forma generalizada, aos de Santa Catarina e do país, caracterizando racismo ambiental. Já foi sugerido que as famílias saiam dos parques, e elas são constantemente acusadas de prejudicar a conservação da Mata Atlântica. Os estudos antropológicos feitos na área e os relatos dos moradores revelam que os quilombolas são alvos de constrangimentos morais, físicos e econômicos. A avaliação de Maria de Lourdes Mina é que nunca houve tantos ataques aos quilombolas como agora, mas também é certo: nunca eles haviam se organizado tanto para defender seus direitos.
No caso de São Roque, a ocupação tem cerca de 180 anos, ligada à economia escravagista na região entre os Campos de Cima da Serra e a planície costeira entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. No interior, onde estão as escarpas, vales e cânions da Serra Geral, praticava-se a pecuária extensiva, e na planície irrigada pelos rios que descem a serra se faziam, como hoje, os cultivos.
O relatório antropológico feito em 2006 por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em convênio com o Incra, é que caracterizou a identidade, historicidade e territorialidade dos quilombolas com a terra onde vivem. E ela é linda. Uma grande pedra branca se destaca entre os rochões vizinhos, com grandes porções de floresta e paisagens que atraem visitantes o ano todo. Mas os quilombolas enfrentam interesses econômicos e setores do movimento ambientalista, dentro e fora do governo, que querem gerir os parques nacionais e defendem a preservação da natureza sem qualquer presença humana, mesmo que o próprio governo federal tenha garantido a titulação das terras aos remanescentes das comunidades dos quilombos.
Apesar de estarem ali desde antes da criação dos parques e de terem uma relação ancestral com a terra, eles precisam de auxílio para garantir a subsistência. As cerca de 30 famílias que vivem hoje na localidade têm moradias precárias, algumas sem energia elétrica e com dificuldade de acesso. Recebem multas se plantarem, e até mesmo se deixarem cachorros entrarem no parque. Um morador foi multado em 2 mil reais por esse motivo. Para sobreviver, uma das alternativas é ser diarista em terras alheias.
Marcio da Silva Oliveira, 25 anos, cuja família mora na comunidade, teve que parar de estudar na sétima série e hoje trabalha no plantio de fumo e bananeiras em São João do Sul. “Eu quero plantar feijão, milho, verdura, esse tipo de coisa, mas se tivesse terra só da gente seria bem melhor”, diz o jovem.
Genito da Silva, 63 anos, que mora na Praia Grande, para onde se mudou depois que uma enchente na região arrasou a casa de seu falecido pai, atesta: “Aqui é o seguinte: se planta um quilo de feijão, colhe um saco de feijão, 60 quilos. Aipim e batata, nem se fala. A terra é boa. Aqui, trabalhou, tem o que comer, não passa mais fome”.
Enquanto aguarda a decisão da Justiça Federal em Criciúma, o povo de São Roque vai lutar, porque não pode mais viver da doação de cestas de alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), se tem onde plantar. Vilson Omar da Silva, de 56 anos, em um discurso emocionado, disse que os quilombolas estão impedidos de manter sua forma de vida e sua cultura naquelas terras, mas o território é deles, de muitos anos. E não poder plantar é como estar exilado da terra sob os próprios pés. O Ato deste final de semana mostra que resistir significa nunca mais ter que destruir sementes porque a terra foi aprisionada.
Fotos: Marcela Cornelli.