Estima-se que em todo o Brasil mais de 1 milhão de visitantes sejam submetidos à prática humilhante e inconstitucional.
Por Marsílea Gombata.
Depois de quatro anos visitando o marido preso praticamente toda semana, F., 42 anos, desistiu. Ela conta não ter aguentado o desrespeito ao qual era submetida a cada visita. “Eu não vou mais visitá-lo porque não aguento esse tipo de humilhação. Na revista a gente tira a roupa, abaixa três vezes de frente, três vezes de costas. E ainda ouvimos: ‘Abre, abre que não estou vendo nada’. Perguntei para a agente penitenciária: ‘Mas você quer ver o quê? Meu útero, meu coração?’ Até que pediram para eu abrir minha vagina com as mãos.”
A violação degradante à qual F. foi submetida não é exceção. Estima-se que em todo o Brasil ocorram mais de 1 milhão de revistas vexatórias todo mês. De acordo com a Rede Justiça Criminal, dados fornecidos pela SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) à defensoria do estado mostram que em 2012 cerca de 3,5 milhões de invasões corporais foram realizadas.
Com base em dados do governo do estado, entre fevereiro, março e abril dos anos 2010, 2011, 2012 e 2013, apenas 0,03% dos visitantes – 3 de cada 10 mil – carregavam itens considerados proibidos, sendo que em nenhum dos casos houve tentativa de se entrar com armas. Por outro lado, a apreensão de objetos ilegais dentro das celas foi quatro vezes superior à quantidade apreendida com parentes, o que comprova que tais objetos proibidos entram por outros meios – e não através das visitas.
No humilhante processo de revista, homens, mulheres, gestantes, idosos e crianças são obrigados a tirar a roupa, agachar diversas vezes sobre um espelho, contrair os músculos e abrir com as mãos o ânus e a vagina para se submeter a uma revista de seus órgãos genitais. “Não pode entrar com nada. A prótese que uso na boca, inclusive, tinha de tirar”, conta M., 50 anos, que só não passava pela revista vexatória para ver o filho quando estava menstruada. “Passei cinco anos sem ter nenhum companheiro sexual. Meu órgão genital, obviamente, se fechou. Fui obrigada a abrir com a mão para que a agente pudesse olhar a parte interna dele.”
Alvo de uma campanha nacional, a revista vexatória é uma prática recorrente, porém ilegal. De acordo com Patrick Caciedo, defensor do núcleo de situação carcerária, esse tipo de revista é inconstitucional. “Não há nenhuma permissão na lei para ela. O número de 0,03 de apreensões revela que ela é insignificante e deixam claro que o objetivo principal não é alcançado”, afirmou Caciedo no lançamento da campanha Fim da Revista Vexatória no Brasil, nesta quarta-feira 23. “O que se consegue são outros objetivos não declarados, como o fim do conato do preso com a família.”
A campanha busca mobilizar a sociedade civil em prol da aprovação no Congresso Nacional do projeto de lei 480/2013, proposto pela senadora Ana Rita (PT-ES), que proíbe a prática em todo o País. O texto foi construído em conjunto entre o governo federal, agentes penitenciários, familiares de presos, secretários de segurança pública e entidades da sociedade civil.
Executivo estadual. De todos os estados do País, apenas Goiás e Espírito Santo proíbem a revista vexatória de forma integral. No Rio de Janeiro, Paraíba, Minas Gerais e Rio de Janeiro, a proibição é parcial. Em maio de 2013, a Vara de Execução Penal da cidade de Joinville proibiu a revista vexatória em dois presídios do estado de Santa Catarina. Os dados oficiais mostram que durante cinco meses não houve aumento nas apreensões relacionadas ao fim da prática.
Vítima da revista vexatória mais de 100 vezes, C., 68 anos, conta que em todas as vezes que visitou o filho preso nunca presenciou, uma só vez, apreensão de drogas, armas ou quaisquer objetos ilegais. “Eu só posso concluir que o objetivo dessa revista é outro. Porque se fosse uma constante justificava”, disse. “A revista vexatória não é para verificar para ver se o visitante leva droga ou não. É apenas mais uma tortura imposta ao preso. É um mecanismo de tortura, que é cultura no nosso País. A gente aprendeu que torturando se ensina. Então como a gente aprendeu apanhando, a gente bate para ensinar.”
Atualmente, 70% das vítimas de revista vexatória são mulheres. O restante diz respeito a homens e crianças. Bebês de colo e idosos também são submetidos ao mesmo procedimento. Além de a Constituição Federal garantir no 1º artigo o princípio da dignidade da pessoa humana, no artigo 5º prevê que ninguém seja submetido a tratamento degradante. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, no artigo 18, a proteção da dignidade da criança e do adolescente e sustenta que eles não devem ser submetidos a nenhum tipo de tratamento constrangedor ou vexatório. O artigo 41 da Lei de Execuções Penais, por sua vez, trata a visita de companheiros, parentes e amigos como um direito do preso.
Vale lembrar ainda que a revista vexatória ofende os compromissos que o Brasil assumiu perante a ONU e a OEA de respeitar os direitos humanos. A Argentina, por exemplo, já foi condenada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos por submeter mulheres e crianças a esse tratamento.
Vivian Calderoni, advogada da ONG Conectas Direitos Humanos, ressaltou ainda que a prática dificulta o próprio processo de ressocialização do preso, contribuindo, futuramente, para o retorno deste ao sistema carcerário. “A revista vexatória faz com que o número de visitantes seja reduzido, que o contato do preso com o mundo exterior seja ainda menor, e seu vínculo com a sociedade representado pela família fique ainda mais restrito”, afirmou. “Isso é extremamente prejudicial para a superação das taxas de reincidência que vivemos hoje no País.”
Como comprovou o caso de F. “Há muitos presos abandonados. E tem muita gente que não vai visita-los porque não aguenta a humilhação. E eu, infelizmente, não vou mais.”
Fonte: Carta Capital