Renamo, que se tornou o principal partido de oposição, retomou agressões. Na região central do país, ataques persistem
Por Estevan Muniz.
Desnutrição e desemprego substituíram o canhão 76 milímetros de Ernesto Macamo, capaz de derrubar aviões 20 anos atrás nos combates contra os guerrilheiros da Renamo (Resistência Nacional de Moçambique). Durante a Guerra Civil, enquanto seus familiares se escondiam nas florestas, foi obrigado a compor as fileiras das Forças Armadas Moçambicanas.
Hoje, em uma pequena palhota (cabana) na favela Drenagem, na periferia de Maputo, capital do país, vive com a família, a quem pouco consegue sustentar prestando os serviços pontuais e infrequentes de segurança particular, já que não tem formação profissional. “Vivo uma miséria. Como vou poder gostar de guerra?”, questiona.
“Se a guerra voltar, vou fugir até o fim do mundo”, Macamo insiste, em conversa com Opera Mundi. Sua história é semelhante a de muitos moçambicanos, que embora se digam dispostos a fugir de qualquer tipo de conflito, parecem ser perseguidos pelos fantasmas da Guerra Civil.
Depois de duas décadas de paz, após uma crise política, a Renamo, que se tornou o principal partido de oposição, retomou o conflito armado com o governo, desde abril de 2012. As negociações em Maputo, iniciadas pelo governo de Armando Guebuza, da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), partido no poder há 39 anos, têm caminhado positivamente. Mas a cerca de mil quilômetros dali, na região central do país, os ataques persistem em paralelo, diariamente, e já podem ter matado cerca de mil pessoas e levado a um milhão ao deslocamento.
No passado, os moçambicanos enfrentaram 16 anos de uma dura guerra entre a Renamo e a Frelimo, na qual se estima que morreu um milhão de pessoas. A chamada Guerra Civil Moçambicana começou em 1997, dois anos depois que a Frelimo libertou o país da colonização portuguesa com a Guerra da Independência, que, por sua vez, já havia durado uma década.
A partir de 1986, com a morte de Samora Machel, herói libertador do país, o governo liderado por Joaquim Chissano promoveu aberturas no governo e na economia. E a paz veio em 1992 com o Acordo Geral de Paz, firmado em Roma. Desde 1994, quando ocorreram as primeiras eleições presidências, a Frelimo tem vencido a Renamo nas urnas.
Reclamações da Renamo
Mas para a Renamo, as eleições são fraudulentas, e o acordo de paz, que previa a instauração de uma democracia pluripartidária e a integração do grupo em instituições do Estado não está sendo devidamente cumprido pelo governo. O presidente da Renamo, Afonso Dhlakama, em outubro do ano passado, chegou a encerrá-lo, depois que a base da Renamo onde ele vivia em Gorongosa, no Centro de Moçambique, foi invadida pelas forças governamentais. Três dias depois, a Renamo recuou e disse que ainda estava vinculada ao acordo. Desde essa invasão, no entanto, Dhlakama está escondido.
A Renamo afirma que o Estado moçambicano foi partidarizado pela Frelimo. O porta-voz de Dhlakama, Antônio Muxanga, que é membro do Conselho de Estado, disse a Opera Mundi que a intolerância política é principal razão do conflito. “Para ser um contínuo, um diretor de uma escola, um coveiro, tem que ter cartão da Frelimo, independente da sua capacidade”, afirmou. Muxanga reclama que as regiões governadas por seus partidos estão à margem de financiamentos de grandes projetos, como de combate à pobreza e mineração.
Uma dificuldade da Renamo é satisfazer antigos combatentes que deveriam, segundo o Acordo Geral de Paz, estar integrados às Forças Armadas de Defesa de Moçambique. “Depois da segunda vitória [nas eleições presidenciais] de 1999, fraudulenta, o governo começou a desencadear um processo de retirada das pessoas que são membros das Forças Armadas provenientes do lado da Renamo”, falou Muxanga.
Os desmobilizados da Renamo, conforme expõe o porta-voz, foram dispensados dos seus quarteis e hoje vivem na inutilidade. “Que vida que estamos a levar? O que a liderança pensa que devemos fazer pra mudar o cenário?’, perguntavam a todo tempo os desmobilizados. E a resposta da liderança era sempre de que devíamos ganhar as eleições. Só que nunca ganhávamos, porque os órgãos de administração eleitoral estão frelimizados. Então, quando vamos às eleições, quem ganha é aquele que tem maior capacidade de roubo,” disse Muxanga.
Mas os desmobilizados da Renamo já não são desmobilizados. Em abril de 2012, depois uma série de combates esporádicos com forças do Estado, eles abandonaram os diretórios do partido nas cidades rumo às florestas na região central do país para travar o conflito que se estende até hoje. Desde o fim da Guerra Civil, eles nunca chegaram a ser desarmados, já que o Acordo Geral de Paz permite que a Renamo mantenha homens de defesa. Nos 20 anos de paz, a Renamo ameaçou voltar à guerra algumas vezes, dessa vez, entretanto, isso se concretizou.
Houve uma escalada da violência em outubro de 2013, quando a base na qual o presidente da Renamo morava foi invadida. Os líderes desse partido, como Muxanga, passaram a afirmar que Guebuza pretende matar Dhlakama. Seus guerrilheiros passaram a atacar carros nas estradas, alegando que levavam soldados do governo disfarçados, e civis morreram – o número é difícil de estimar. As Forças Armadas de Moçambique começaram a atacar aldeias onde residiam membros da Renamo, assassinando e pilhando trabalhadores rurais e estuprando as mulheres, segundo Muxanga.
Nessa época, o Itamaraty chegou a elaborar um plano de contingência para proteger os cerca de 3.500 brasileiros que vivem em Moçambique. Muitos dos 300 brasileiros – a maioria missionários – que viviam na província de Sofala, onde o conflito é mais intenso, deixaram a região. Um pastor evangélico brasileiro chegou a ser baleado quando trafegava em um comboio por essa província. No dia 1 de abril de 2014, um comboio de carvão da mineradora brasileira Vale foi atacado. Ninguém morreu, mas um maquinista ficou ferido.
O governo não deu autorização para fazer reportagens nas áreas de conflito. E mesmo jornalistas da imprensa local relatam que está cada vez mais difícil visitá-las. A reportagem procurou o porta-voz do governo nas negociações com a Renamo, José Pacheco, mas não obteve retorno.
Negociações de paz
As negociações de paz começaram em dezembro de 2012. Em 30 de março, as duas partes chegaram a um consenso sobre o mecanismo de cessar fogo. Apesar de a Frelimo ter resistido desde o princípio à presença de observadores internacionais, um comando central de fiscalização do fim das agressões terá a presença de 23 membros de pelo menos oito países, entre africanos e europeus. Um dia antes, contudo, a Renamo atacou bases de forças do governo. A despeito do que se discute na mesa de negociações, os conflitos continuam.
O historiador e cientista político moçambicano João Pereira, professor da Universidade Eduardo Mondlane, a maior do país, explica, no entanto, que isso é uma estratégia normal na política africana. “A força política está relacionada ao espaço geográfico controlado. Muita vezes, quando, se chega a esse período de negociações, tanto as forças do governo, como as forças de oposição têm sempre tendência de aumentar o seu raio de ação”, comentou.
Otimista, Pereira observa que o conflito é parte do processo político das democracias não consolidadas na África e acredita que a estabilidade em Moçambique virá em breve, quando a Renamo tiver de entrar no jogo eleitoral deste ano para a presidência, lançando, provavelmente, seu candidato que concorreu a todas as eleições presidências que já se deram no país: Dhlakama. “Não existe uma vontade interna de haver mais uma guerra. Essa situação é condenada pelas populações locais, pelas elites urbanas, por toda a esfera internacional”, disse.
Pereira é quem calcula os mil mortos e um milhão de deslocados. É um dos poucos cientistas políticos que arrisca um número, porque de fato circulou pela região de conflito. “Pessoas que estavam habituados a cultivar as suas terras agora estão a viver da dependência das instituições do Estado ou religiosas. A densidade populacional aumentou nas vilas, há muita predisposição pra malária, pra diarreia, principalmente nas crianças, que também têm pouco acesso à educação normal”, relatou.
Fonte: Ópera Mundi.
Foto: Estevan Muniz/Opera Mundi.