Por Dora Fontes Secca.
Ontem (25/03/2014) a Universidade Federal de Santa Catarina viveu momentos de terror. A polícia federal realizava uma operação com policiais à paisana e em meio a ação prendeu cinco estudantes sob a justificativa de que portariam maconha. A comunidade universitária imediatamente se manifestou. Daí por diante o que temos é uma sequência de ações truculentas por parte da Polícia Federal e da Polícia Militar que resultou numa prova da violência que as maiorias da periferia encaram todos os dias.
Esse é um daqueles momentos não tão raros em que torna-se evidente demais como é a polícia – ao cumprir o pior papel que poderia abraçar – que efetivamente cria seu polo diametralmente oposto. Os estudantes, professores e servidores que foram violentados poderiam ter vivido um dia comum no cotidiano da UFSC. Nenhum deles certamente pediu aos céus que a providência divina os pusesse diante da necessidade de entrar em conflito direto com o aparato repressivo do Estado. Ficou escancarado que é o funcionamento autoritário e truculento da ação policial que gerou a revolta – a que a polícia militar transformou em cenário de guerra civil ao responder com ainda mais autoritarismo e violência.
A polícia deveria responder diante da sociedade catarinense porque agentes disfarçados estavam no campus universitário em tempos supostamente democráticos. E mais, ela deveria ser obrigada a justificar o injustificável: a razão de cada bala de borracha, de cada spray de pimenta e o uso incontável dos cassetetes. Deveria, mas sabemos que não vai, pedir desculpas por sua incompetência, pela frivolidade da violência, pelo massacre cotidiano de que participa – e de cujo qual deu apenas uma amostra aos universitários.
De nossa parte, alguns setores da universidade tem que engolir em seco pois até a pouco tempo atrás procurava nestas instituições repressivas o apoio para garantir a segurança no campus – entre outras medidas conservadoras que foram defendidas por Roselane Neckel[1] e por uma manada de “ingênuos” (reacionários) – nem a esquerda se salva da bestialidade, a chapa Acabou Chorare, por exemplo, defendia ações ostensivas como o fechamento noturno do campus. Que fazer agora, quando o aparato repressivo policial se torna a ameaça à segurança de estudantes e trabalhadores da universidade (até mesmo o diretor do CFH levou spray de pimenta no rosto)? Que fazer se a presença do crime na universidade nos assalta e dá medo enquanto a presença da polícia espanca e nos aterroriza?
De minha parte, relembro um texto lançado pelo coletivo “UFSC à esquerda” no ano passado e que permanece atual: não há outra forma de combater o medo que ronda a UFSC sem investir ainda mais na presença das comunidades do entorno dos campi. Fechá-lo com portões ridículos nos deixará apenas mais vulneráveis e pior: é o divórcio da instituição universitária com o único sujeito que deveria lhe importar: o povo. Trazer a polícia para o campus terá unicamente o efeito que já somos capazes de imaginar – ou melhor que isso, assistir aos vídeos nauseantes da violência ocorrida.
Outra questão que fica é que, verdade que a desmilitarização da Polícia Militar é um passo imprescindível para a democracia, principalmente se ele for dado no sentido de construir uma verdadeira “Polícia Cidadã” – como havia sonhado o Coronel Nazareth Cerqueira[2]. Contudo, a Polícia Federal não é militar. E isso inaugura um novo chute em nossos traseiros.
A lição desse dia tenebroso ainda vai demorar para ressoar em nosso comodismo, mas a verdade não é outra: na sociedade capitalista nenhuma polícia pode garantir mais segurança. E mais, toda polícia que está de frente para o povo não pode nos oferecer segurança alguma. A polícia cidadã que teremos que construir é aquela que encontramos quando olhamos para o nosso lado e a encontramos lutando conosco. Aquela que ao nos encontrar nas ruas, deixa de lado o cassetete, tira o capacete e mostra aos olhos o que há debaixo de tudo aquilo: a mesma carne pintada de povo de que somos todos feitos.
[1] “Temos sim que chamar forças policiais”, diz reitora da UFSC sobre a segurança” Cf. Diário Catarinense, 10/05/2013, http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/policia/noticia/2013/05/temos-sim-que-chamar-forcas-policiais-diz-reitora-da-ufsc-sobre-a-seguranca-4133222.html
[2] Duas vezes comandante-geral da corporação, Nazareth Cerqueira comandou o 4o.Batalhão de Polícia Militar, em São Cristóvão, o 19o. BPM, em Copacabana. Ainda foi Ajudante Geral, Diretor-Geral de Ensino, Subchefe do Estado-Maior e chefe do Estado-Maior da PM. Era formado em Psicologia e Filosofia. Leonel Brizola fez dele o primeiro oficial negro a comandar a mais antiga instituição policial, criada por Dom João VI, em 1809, com o nome de Divisão Militar da Guarda Real de Polícia. “[…] Nazareth Cerqueira vai concretizar o que chamamos de “ação de transformação”, ou seja, a instalação concreta de políticas de segurança pública diferenciadas e mais qualificadas com a marca dos direitos humanos. […] ele rompe definitivamente com a ideologia militar de segurança nacional e propõe uma polícia cidadã, sem os estereótipos tradicionais da corporação. De 1991 a 1994, o ex-comandante da PM entroniza um conceito que vai perdurar e influenciar mais à frente todos os projetos de segurança pública no Estado: a polícia é um organismo prestador de serviços qualificados para todas classes e não uma instituição monolítica voltada para a segurança do Estado.” (NOBRE, Carlos. Coronel Nazareth Cerqueira: um exemplo de ascensão negra na Polícia Militar do Rio de Janeiro).