Por Felipe Milanez.
A presidenta Dilma Rousseff decidiu pela suspensão da ordem e a implantação do “estado de exceção” para lidar com o crescente conflito por terras. A medida segue o trâmite legal que autoriza a “exceção”, estabelece um período no tempo (trinta dias), e no espaço: o Sul da Bahia. O motivo é um problema de ordem civil, que decidiu-se enfrentar por braço militar: a regularização das terras indígenas. O uso do Exército contra civis foi determinado para “prevenir o agravamento dos conflitos que vêm ocorrendo entre índios tupinambás e produtores rurais”, publicado na segunda-feira 17 de fevereiro, seguindo Portaria do Ministério da Defesa que dispõe sobre a Garantia da Lei e da Ordem. Cerca de 500 soldados foram deslocados. As Forças Armadas vão agir de uma forma ampla na região de Buerarema. A medida de “exceção” é valida, a princípio, até 14 de março.
O Exército, junto da Polícia Federal e da Força Nacional, tem sido frequentemente utilizado pela presidenta para tratar questões indígenas. Em seu mandato, a Polícia Federal protagonizou ações que acabaram levando à morte de dois indígenas, Adenilson Kirixi Munduruku (7 de novembro de 2012, no Pará), e Oziel Terena (30 de maio de 2013, no Mato Grosso do Sul). Ambos crimes terminaram com as forças de Estado protegidas pela impunidade.
Em dezembro do ano passado, no sul do Amazonas, indígenas Tenharim buscaram refúgio em um quartel do Exército para se protegerem de um genocídio organizado pela elite local, que incitou o ódio racial contra os índios e mobilizou uma multidão para ataca-los – algo que lembra o que se fazia, na mesma região, durante as correrias dos seringais. As investigações da Polícia Federal contra essa tentativa de se produzir um massacre, um brutal crime contra a humanidade, tampouco chegaram a conclusões sobre culpados.
O que ocorre agora na Bahia é um desenrolar de uma crise que se estende ao longo dos últimos anos no que toca aos direitos indígenas: a incapacidade do governo de fazer cumprir a Constituição. E a saída escolhida é a mais perigosa.
A medida foi condenada pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) que, em comunicado, alertou para o perigo da militarização do conflito e expôs que a verdadeira justificativa utilizada pelo Planalto para determinar a Exceção seria a de expulsar os indígenas das terras que reivindicam, em vias de conclusão de processo administrativo de regularização: “Este argumento não é verdadeiro, já que muitos dos ataques contra a população indígena partem de não índios contrários à conclusão do processo administrativo. Por outro lado, muitos dos pequenos agricultores já afirmaram que apenas aguardam as indenizações para saírem das terras.”
No meio desse debate, o uso das forças armadas visa intimidar e despolitizar o problema, trazer para uma esfera autoritária a possibilidade de decisão suprema que se impõe com a garantia da força maior. Nesse processo, inúmeros direitos individuais são ameaçados, principalmente os direitos dos mais vulneráveis.
A literatura sobre o Estado de Exceção é um tanto atual no pensamento critico, principalmente pelas contribuições do filósofo italiano Giorgio Agamben, e da filósofa belga Chantal Mouffe. A discussão remonta ao teórico nazista Carl Schmitt, que produziu uma influente e importante reflexão sobre o tema. Para Schmitt, o estudo da exceção se revela mais interessante do que sobre a própria regra em si. “A regra não prova nada: a exceção prova tudo.” É pela exceção que o poder real se mostra como um mecanismo, e se torna a regra pela repetição. O fim seria a ditadura.
Agamben usou a teoria para, além de abrir uma grande janela reflexiva, descrever os tempos de Bush e da guerra civil global. É uma medida que ele situa entre o político e o legal, uma terra sem dono. E, o que é mais grave, alertou, indo muito além da interpretação de Schmitt: “o estado de Exceção tende a se tornar cada vez mais um paradigma dominante de governo na política contemporânea”.
O governo federal editou, em dezembro passado, o manual chamado “Garantia da Lei e da Ordem” (Portaria Normativa número 3, do Ministério da Defesa, também conhecida como GLO). O manual foi duramente criticado e sofreu uma revisão, sendo a segunda edição publicada em fevereiro 2014. A regra dispõe sobre o uso das Forças Armadas, de forma excepcional, e portanto, de suspensão da própria ordem, para a “garantia da lei e da ordem”, assim como a suspensão de direitos civis, em situações de “não guerra”. A exceção é apresentada como uma medida constitucional, citando o artigo 142, com referências vagas a “razoabilidade”, “proporcionalidade” e “legalidade”. Há países onde o “estado de Exceção” está previsto na lei, como no Brasil (considerando a GLO uma norma de “exceção”) e na França, e onde ele não está previsto em lei.
Para todos os fins, de acordo com a GLO, basta a decisão soberana da “exceção”, ou seja, basta a presidenta determinar. A decisão compete exclusivamente ao Presidente da República, em decisão comunicada ao Ministro da Defesa. E não é preciso, como no caso de guerra, ser consultado o Congresso. Nacional
O fato de estar na lei implica algumas regras, o que pode parecer contraditório uma vez que a própria suspensão da regra é determinada pela regra. A “garantia da lei e da ordem”, como aplicada agora, é uma revelação da incapacidade do governo em resolver as disputas pelas vias legais, pelos processos administrativos e judiciais, como deveria ocorrer a regularização das terras indígenas.
Essa norma GLO é algo assustadora para os que esperam uma vida longa à democracia. Na primeira versão, de 2013, os inimigos na GLO eram definidos como “forças oponentes”, apresentados de forma distinta de um “inimigo militar”, que deve ser eliminado. Entre as “forças oponentes” descritas haviam formas políticas de reivindicação coletiva de direitos: “movimentos e organizações”. Os Tupinambá, assim como os Tenharim, assim como um grupo de amigos no Facebook, seriam todos organizações e movimentos. Entre as ameaças graves havia, por exemplo, a de “paralisação de atividades produtivas”.
A segunda edição, de 2014, feita após os vários protestos da sociedade contra essa Portaria do Ministério da Defesa, retirou as referências às forças oponentes e aos movimentos e organizações. E no que toca às “ameaças”, agora lê-se: “A tropa empregada numa Op GLO poderá fazer face a atos ou tentativas potenciais capazes de comprometer a preservação da ordem pública ou ameaçar a incolumidade das pessoas e do patrimônio.”
Estas expressões genéricas deixam brechas para que tudo seja decido pelo “soberano”, dando mais margens ainda para a “exceção” e para a força da decisão política em mão militar. Qual a legitimidade de um militar para definir, em operação contra civis, o que é uma tentativa potencial de comprometer a ordem pública, ou uma ameaça a incolumidade de pessoas, no meio de um conflito entre um povo indígena e não indígenas no sul da Bahia?
A referência anterior deixava claro os inimigos e os atos a serem combatidos: as “forças oponentes”, os “movimentos e organizações”. O poder discricionário agora aumentou e atenta mais gravemente aos direitos humanos. Nesse caso, o risco maior é, como sempre ocorre nos casos de exceção, aos mais vulneráveis, ou sejam, as “minorias”.
O país vive um momento de ódio às minorias, que é mobilizado por aqueles que não querem que seus privilégios sejam tocados. Quem são as “minorias” (que podem ser a verdadeira “maioria da população”)?
Estas “minorias” que reivindicam direitos são equivalentes ao “tudo o que não presta”, segundo definiu o deputado federal ruralista Luis Carlos Heinze, do PP/RS, em vídeo divulgado pela Mobilização Nacional Indígena e com ampla circulação nas redes sociais. “Tudo o que não presta” são os “índios, quilombolas, gays e lésbicas”.
Na imprensa, os problemas sociais têm sido “racializados” em textos de articulistas e jornalistas enviados para essas áreas, na busca de “traços” raciais que impliquem em deslegitimar direitos políticos, “traços” raciais que sirvam para desconstruir identidades, traços que são medidos como se fazia na antiga craniologia.
Nesse mesmo sentido racialista foi descrita a viúva de Ivan Tenharim, líder tenharim morto (morte matada ou por acidente, as investigações da Polícia Federal não foram a fundo), por enviado da Folha de S. Paulo para a zona de conflito: “uma mulher miúda com poucos traços indígenas”. A descrição racial foi aproveitada, em seguida, por um colunista do mesmo jornal para sustentar não tratarem-se estes entrevistados pelo repórter, com base em suas descrições, de elementos da categoria “índios” – como se a discussão anatômica girasse em torno de alguma espécie não humana.
Os Tupinambá são frequentemente descritos e categorizados, colocados em um mapa de cores, de réguas métricas, para aparecerem como não portadores de “traços indígenas” – de forma a “animalizá-los” (como diria Frantz Fanon em Os Condenados da Terra), e deslegitimar suas reivindicações políticas. Na revista Veja os Tupinambá foram apresentados como “Os novos canibais”, que usam cocares de “penas de galinha”, são “negros” e “professam o candomblé”, “tribo composta de uma maioria de negros e mulatos, mas também tem brancos de cabelos louros”.
O uso sistemático da Força Nacional nos trabalhos de estudo da implantação de usinas hidrelétricas dentro do território Munduruku, contra a vontade dos índios e em desrespeito à Constituição e convenções internacionais das quais o país é signatário, mostra que, pelo menos no que toca aos direitos indígenas, o “Estado de Exceção” é uma violenta realidade cotidiana, não apenas teórica. Nesse caso, o CIMI trata da “militarização como um instrumento político”, e fala do “diálogo com a ‘ponta da baioneta’ no pescoço dos povos indígenas”.
A solução encontrada pelo governo para todos esses problemas de racismo, xenofobia, intolerância, ameaça de genocídio: o Exército, a Força Nacional, a Polícia Federal, a “Exceção”.
Essa “exceção” formalmente autorizada na Bahia com o envio do Exército, a partir da regulamentação recente da Portaria do Ministério da Defesa, e com a iminência da aprovação de uma nova lei “antiterrorismo” feita sob medida para um ano que se anuncia de fortes turbulências políticas, é uma profunda ameaça à democracia. Mais grave: pode se revelar uma nova técnica permanente de governo, como sugere Agamben.
Fonte: Carta Capital.