“Morosidade total”. Assim o Movimento Passe Livre (MPL) de Joinville descreve a conduta da Prefeitura em relação à regularização do transporte coletivo municipal. Depois de um ano de governo, o Prefeito Udo Döhler mal iniciou o processo licitatório para a nova concessão do serviço na cidade.
Desde a década de 60, as empresas Gidion e Transtusa operam o sistema de transporte coletivo em Joinville. Processo licitatório nunca foi feito, apesar de, mais tarde, passar a ser exigido por lei: o artigo 37, cláusula XXI, da constituição de 88 declara que “as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública”; a lei nº 8.987, de 1995, estabelece, no artigo 43, que “ficam extintas todas as concessões de serviços públicos outorgadas sem licitação na vigência da Constituição de 1988”.
A última renovação do contrato entre a Prefeitura e as empresas concessionárias havia acontecido em 1998, durante o governo Luiz Henrique da Silveira, e previa mais 15 anos de atuação para as empresas. O prazo terminou em 8 de janeiro deste ano e, em vez de lançar uma licitação e legalizar a concessão do serviço, o Prefeito Udo prorrogou o contrato assinado por Luiz Henrique por mais seis meses.
Apesar de a Prefeitura declarar que medidas estão sendo tomadas para possibilitar que a licitação seja lançada até julho – sem, portanto, a necessidade de uma segunda prorrogação de contrato – o Prefeito declarou, em entrevista para o jornal A Notícia no dia 12 de fevereiro: “só se descer o santo para conseguirmos lançar o edital sem esticar a concessão um pouco mais”.
Mesmo voltando atrás em relação à declaração do prefeito sobre uma provável segunda prorrogação, o secretário de Comunicação da Prefeitura, Marco Aurélio Braga, declarou: “Licitações demoram para acontecer. Você acha que a licitação do transporte vai ser rápida? A licitação do transporte vai ser muito demorada, por causa de recursos, de questionamentos…”.
O secretário declarou, ainda, que a Prefeitura irá refazer o edital de licitação – e, portanto, descartar o material iniciado no governo anterior, do Carlito Merss – e que o único passo concreto tomado para fazer avançar o processo licitatório foi a decisão de promover audiências públicas, a fim de discutir transporte com a população. Para a Prefeitura, um ano foi necessário para tomar apenas uma decisão porque o governo precisava amadurecer. E o secretário ressalta: “Nós não fazemos nada com pressa. Essa é uma política deste governo com que as pessoas vão ter que se acostumar”.
Se por um lado a Prefeitura acredita que um ano foi necessário para rever o processo de forma geral, Hernandez Eichenberger, 27 anos, e Renan Filipe, 16 anos, integrantes do MPL, acham que o andamento poderia ter sido mais ágil. Para eles, a Prefeitura deixou o processo se estender até um ponto insustentável, até que a prorrogação fosse inevitável. Naquela altura, no final de 2013, o prefeito mostrou duas opções: ou adiar a licitação ou deixar a cidade sem concessionárias operando. “Disseram: ‘agora vocês querem ficar sem ônibus?’ Nos sentimos chantageados”, explicou Hernandez, que acrescenta: “Udo fez nada vezes nada” para colocar o edital da licitação em prática”.
A decisão de promover audiências foi divulgada em forma de um texto oficial: uma resposta à carta protocolada pela Frente de Luta Pelo Transporte (entidade formada pelo MPL e apoiadores) em fevereiro. O documento da Frente continha quatro reivindicações: pedia, além de 14 audiências públicas, a revogação imediata do aumento da tarifa, a promoção de um plebiscito popular para decidir o modelo de transporte e a implementação do IPTU Progressivo na cidade. A questão referente às audiências foi a única respondida pela Prefeitura. Mesmo assim, não se sabe quantas sessões serão feitas nem onde nem em que formato. Para Hernandez e Felipe, a resposta oficial foi vaga.
Em relação às audiências prometidas pelo Prefeito (e que devem, de acordo com a assessoria de imprensa, começar na segunda quinzena de março) o MPL espera que as propostas e discussões que a população venha a levantar sejam, de fato, levadas em conta no novo processo licitatório. No entanto, a secretário declarou que, para a Prefeitura, o principal objetivo das sessões será discutir mobilidade urbana no geral, levando em conta novos modais de transporte. “O modelo de ônibus está consolidado. Não tem que questionar isso”, enfatizou Marco Aurélio.
Dívida
Em dezembro de 2012, no final do governo Carlito Merss, a Prefeitura reconheceu uma suposta dívida com Gidion e Transtusa, declarando que o município devia R$ 125 milhões às concessionárias. O valor foi levantado pelas próprias empresas e seria referente às diferenças entre os aumentos tarifários pedidos anualmente e os concedidos pela Prefeitura (geralmente, menores do que os solicitados pelas concessionárias).
O valor deveria, então, ser incluído no processo de licitação. Na prática, a empresa que ganhasse o direito de operar o sistema de transporte da cidade arcaria com os R$ 125 milhões. Segundo o MPL, a inclusão da dívida no edital da licitação significaria, politicamente, garantir que Gidion e Transtusa continuassem como as concessionárias do transporte, já que dificilmente alguma outra empresa quisesse iniciar a atuação em débito. A dívida, diz Hernandez, foi “o legado que o (ex-prefeito) Carlito deixou para a cidade”.
Havia a possibilidade, no entanto, de que o atual prefeito questionasse a legitimidade do débito. Segundo o secretário, o governo “não compactua com a forma que foi feito o reconhecimento da dívida com as empresas” e aguarda a decisão judicial sobre o caso, uma vez que as concessionárias estão processando a Prefeitura. “A dívida é uma das anomalias do (antigo) edital com que a Prefeitura não concorda”, ressaltou Marco Aurélio. O atual governo, portanto, assume que não deve incluir este ponto no novo edital.
Porém, em abril de 2013, o procurador-geral do município, Luiz Cláudio Gubert, em entrevista ao jornal A Notícia, fez a seguinte declaração em relação à dívida: “Foi assinado, não há como voltar atrás. O acordo está feito e coloca fim a uma ação das empresas contra a Prefeitura. Ficará assim, agora vamos estudar a melhor forma de incluirmos no edital”.
Irregularidades
Desde 2001, por determinação do art. 4°, § 6°, do Decreto municipal n° 9.934, foi instituída a tarifa embarcada (comprada no ônibus, diretamente com o motorista), por conta da implementação da bilhetagem eletrônica e da dispensa dos cobradores. Na ocasião, custava R$ 1,20, vinte centavos a mais que a passagem antecipada. Para justificar a diferença nas tarifas, a Prefeitura havia argumentado que o objetivo era desestimular o pagamento a bordo e evitar atraso nas viagens, que poderia representar mais ônibus em circulação, maior consumo de combustível e, em consequência, elevação da tarifa.
Diante de tal fato, no mesmo ano, Davy Lincoln Rocha, então procurador da República, entrou com uma Ação Civil Pública contra o município de Joinville e as empresas Gidion e Transtusa, sob a alegação de formação de cartel, visando à dominação do mercado de serviço de transporte coletivo, à eliminação da concorrência no setor e ao aumento arbitrário dos lucros (cobrando duas tarifas para o mesmo serviço).
De acordo com o documento elaborado, ao instituir diferenciação entre a tarifa previamente paga e a tarifa embarcada, a Prefeitura violou o princípio da igualdade previsto no art. 5° da Constituição Federal. A ação também declara que as empresas foram “beneficiadas e agraciadas na mesma proporção”, pois o valor da passagem aprovado por lei formal e antes calculada por planilha de custos apresentada pelas próprias empresas havia sido de R$ 1,00. Portanto, a diferenciação da tarifa não era justificada, pois não se tratava de um desconto de 20 centavos para quem comprava passagem nos postos de venda, mas, sim, de uma penalidade para quem a adquirisse no veículo.
A ação ressalta também que o sistema de bilhetagem automática foi apresentado pelas empresas como um avanço tecnológico e melhoria para os consumidores, porém, gerou o desemprego pela dispensa dos cobradores, antes contratados sob regime de trabalho temporário, e atribuiu dupla função ao motorista.
O próprio procurador assume que o processo “morreu” e, passados 15 anos, as concessionárias continuam cobrando a tarifa embarcada.
Planilhas
No dia do vencimento do contrato da Gidion e da Transtusa (8 de janeiro de 2014), Leonel Camasão, 27 anos, presidente do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) Santa Catarina, protocolou um requerimento na Prefeitura – com base na Lei da Transparência (nº 12.527/2011) – para ter acesso à planilha atualizada (referente a 2013) dos gastos das concessionárias e às descrições do lucro líquido das empresas no último ano – dado que deveria servir de parâmetro para o reajuste da tarifa. O pedido foi feito como pessoa física e não teve vínculos partidários.
Ele recebeu a planilha, mas o governo não disponibilizou os dados sobre o lucro líquido. Para Leonel, o prefeito está descumprindo a Lei da Transparência e sonegando informação. “A Prefeitura tem condições de fornecer a informação (referente ao lucro líquido). Se não forneceu, foi deliberadamente”, disse.
Com a planilha atualizada em mãos, Leonel encaminhou o documento para uma auditoria, que deve avaliar a legitimidade dos dados apresentados. Ele acredita que a elaboração das planilhas deveria ser tarefa da Prefeitura e não das empresas, para evitar que informações sejam escondidas ou distorcidas. “Independente de quem opera o sistema, se iniciativa pública ou privada, o controle cabe à Prefeitura”, diz. E ele exemplifica: “Se as concessionárias venderem seis milhões de passes, mas disserem que venderam apenas quatro milhões, não temos como comprovar”. Para ele, é dever da Prefeitura verificar se as empresas estão declarando o valor real de lucro que obtêm com a concessão.
A auditoria não tem prazo para ser finalizada, mas, Leonel adianta que se for constatada alguma irregularidade, tomará medidas legais para fazer a denúncia.
Ônibus lotado
O MPL luta por um transporte público porque considera o sistema privado um “empecilho à mobilidade, já que trata o sistema meramente como fonte de lucro”. Hernandez e Felipe explicam, por exemplo, que o ônibus lotado é vantajoso para as empresas porque o custo (de circulação, manutenção etc.) de um ônibus é fixo: é o mesmo se no veículo estiver um passageiro ou 30 deles. Portanto, quanto mais gente dentro do ônibus, maior é arrecadação.
O grupo considera transporte um direito fundamental e destaca que quem é excluído do sistema, por não poder pagar a passagem, é ignorado pela sociedade em geral. Hernandez e Felipe consideram a catraca símbolo desta exclusão, já que determina quem entra, quem tem acesso ao ônibus. E destacam: “Pagar pelo transporte é ideológico, uma questão de disciplinação, e resultado de uma sociedade mercantilizada”.
O movimento também costuma ir às ruas contra os aumentos de tarifa. Desde que a Prefeitura anunciou o mais recente reajuste – que elevou a passagem antecipada para R$ 3,00 e a embarcada para R$ 3,40 – no último dia de 2013, o grupo fez cinco manifestações. Para Hernandez e Filipe, apesar de a Prefeitura não ter revogado o aumento, os atos ajudaram a permear a decisão de promover audiências públicas e representaram uma vitória.
Eles ressaltam que consideram a atitude do prefeito de declarar aumento no dia 31 de dezembro antidemocrática, já que os estudantes e trabalhadores estão de férias neste período do ano e, portanto, as bases do movimento, desarticuladas. A dupla também acredita que o prefeito não está aberto ao debate: “ele nos recebeu, mas é como se tivesse falado com a gente do portão”, explicaram.
A partir de agora, o movimento deve pressionar a Prefeitura para que o novo processo licitatório seja feito com agilidade. Nas audições, pretendem debater a “instalação de um sistema público, que aponte para tarifa zero nos próximos anos”.
A reportagem procurou a assessoria de imprensa da Gidion e da Transtusa, que informou que as empresas preferiam não se manifestar.
Foto: Jéssica Michels
Fonte: À Margem