“Uma Família em Tóquio” é uma versão cuidadosamente atualizada do filme “Era Uma Vez em Tóquio”, do diretor Yasujiro Ozu.
Por Léa Maria Aarão Reis.
Quando Yasujiro Ozu filmou Era uma vez em Tóquio, em 1953, tinha 50 anos. Começara a trabalhar bem jovem, ainda no cinema mudo, e tinha como filme predileto Cidadão Kane. Orson Welles sempre foi o seu guru cinematográfico.
Na filmografia de Ozu, considerado o pai dos cineastas japoneses, o tema da família é recorrente. As relações dos mais moços com os mais velhos, os desencontros entre uns e outros, os tempos que transcorrem diversos, e, no ambiente familiar, a vida cotidiana nos mais apurados detalhes, objetos e acontecimentos da rotina sem fim.
Seus idosos são personagens tocantes, até pungentes, reflexivos, generosos ou perplexos diante das transformações radicais da época. Os mais velhos detonam as narrativas de Ozu para quem uma máxima de Lao Tsé – a velhice é a vida na sua forma suprema – está na raiz do belo trabalho que deixou.
Considerado pelo prestigiado British Film Institute, de Londres, como o terceiro melhor filme de todos os tempos, Tôkyô Monogatari está sendo relançado este ano, no Brasil, em cópia cuidadosamente restaurada, um sofisticado trabalho do assistente do cameraman do cineasta nipônico nessa produção, Takashi Kawamata.
Não surpreende que os idosos ocupem um lugar de protagonistas na filmografia do cineasta chamado carinhosamente de cineasta do tofu se referindo à insistência no tema escolhido – família, velhice; o novo e o velho – ao que ele costumava responder, sempre de bom humor: “Insisto para aprimorar o meu tofu”.
País campeão em longevidade (23% dos japoneses têm mais de 65 anos, a maior marca do planeta), no Japão há 1 500 indivíduos com mais de 105 anos – a grande concentração desta população idosa vive nas ilhas do arquipélago de Okinawa.
Hoje, as políticas públicas japonesas dirigidas a ela têm como objetivo principal monitorar a expectativa de vida cada vez mais estendida do povo. E a preocupação de serem os filhos dos octogenários e nonagenários os cuidadores dos pais – pessoas também idosas, com mais de 60 anos de idade.
No filme, é ao deixar por uma temporada a pequena cidade onde vive o casal de velhos – ele, um professor aposentado – e fazendo as malas para uma viagem onde serão reencontrados os filhos adultos vivendo e trabalhando na capital, que os Hyraiama iniciam a viagem a Tóquio onde vão viver uma experiência quase hostil encerrada de forma dramática.
Os filhos não terão tempo para acompanhá-los nos passeios da visita à metrópole porque estão sempre muito ocupados; o seu ritmo de vida cotidiano, trepidante, não será o mesmo dos tempos mais lentos dos Hyraiama e não haverá espaço para dar-lhes atenção nem a disponibilidade para hospedá-los em casa por um período mais extenso. Os pais são um estorvo para os filhos.
O núcleo familiar sem aconchego, o tempo que escorre e passa no dia-a-dia, a rotina dos acontecimentos e também as perdas durante o percurso da nossa existência são componentes deste belo filme clássico no qual a profunda humanidade dos personagens faz dele uma obra-prima universal – sem falar da sua austeridade estética, do rigor artístico, da meticulosa iluminação da fotografia em preto e branco, da limpeza e da perfeição na construção das imagens.
Não apenas neste trabalho, mas em toda sua filmografia, Ozu é sempre uma lição para os que estão produzindo filmes e para o espectador que realmente ama cinema e o vê como pura arte.
Mas agora, mais de meio século depois de Tôkyô Monogatari, Yoji Yamada, que foi assistente de Ozu quando tinha 22 anos e estudava na Universidade de Tóquio, assume um desafio perigoso. Refilmou a obra prima de Ozu sensei – sensei: aquele que fornece as instruções – e se expõe à comparação com o pai de todos.
Yamada tem 80 anos, é o diretor japonês mais premiado com diversos Jumpos, o Oscar nipônico, e autor de vasta filmografia. Samurai ao entardecer é um dos seus filmes mais conhecidos. A casa pequena, também de sua autoria, está sendo apresentado no Festival de Berlim deste mês e a série É difícil ser homem foi um grande sucesso em seu país.
Uma família em Tóquio, produção do ano passado e igualmente em cartaz, é o resultado dessa (re)visita dos Hyraiama aos filhos. Em um primeiro momento foi recebida com descrença pela crítica por um suposto oportunismo. Mas logo foi reconhecida como uma versão cuidadosamente atualizada que remete o espectador a uma Tóquio atemporal. Sem a precariedade da devastação do pós-guerra, insinuada claramente no filme de Ozu, mas por outro lado sem o clichê da opulência localizada, da região turística da cidade e das ruas do bairro de Ginza com suas mega lojas de marcas do luxo agressivo globalizado. A refilmagem de Yamada é honesta e delicada.
Meia hora mais breve que a primeira versão, com duas horas e meia, Uma família traz a história aos tempos de hoje em diálogos que não estão em Ozu – e nem poderiam estar. Duas menções à tragédia nuclear de Fukushima, por exemplo, e a observação de Hyraiama conversando com o amigo Numata durante uma noitada copiosamente regada a saquê: ”Nosso país não deu certo. O que fazer? Começar tudo de novo?” referindo-se às dificuldades econômicas.
Os filhos sem tempo para os pais acabam por instalá-los em um hotel internacional, nas cercanias da cidade. Os velhos fazem as refeições no pretensioso restaurante gastronômico do cinco-estrelas e, constrangidos, se servem à mesa com garfo e faca, ao invés de usarem os tradicionais hachis que não são oferecidos.
Dormem em camas confortáveis para os padrões ocidentais com enormes travesseiros, inaceitáveis para o critério de conforto oriental. “É difícil dormir numa cama macia como esta,” diz Shukichi à mulher, e ainda mais com estes travesseiros enormes!” Os dois começam a sentir saudade do cachorro Goro deixado em casa e falam em abreviar a viagem e retornar.
Uma das cenas mais divertidas, e também pungentes, da versão de Yamada, a dos velhos sentados na beira da cama do apartamento do andar alto do hotel, assistindo televisão, e depois olhando o céu pela janela e a roda gigante turística vizinha. Não têm o que fazer lá fora. Shukichi lembra à mulher que já viram uma roda gigante semelhante, no cinema, no Terceiro homem de Welles. “Passava-se em Viena e o filme tinha ótimos diálogos…”
Mas os velhos não se lamentam. “Os filhos nunca saem como nós esperamos,” ele constata, objetivo, na conversa com Numata.
O filho caçula Shoji que escolheu ser artista e ganha a vida com dificuldade como cenógrafo transgride as rígidas regras familiares, na versão atual da trama. A senhora Tomiko, a mãe, um dos personagens mais doces mostrados pelo cinema, diz: “Devemos aceitar as coisas como elas são. Esta é a maior qualidade de Shoji. Ele vive o presente, cada coisa de uma vez; não tem obsessão pelo futuro.” A ideia zen-budista da fala de Tomiko serve como uma das chaves para o filme de Yamada.
Se Ozu é de tão delicado que seu cinema parece ser feito com as pontas dos dedos, pontuado de pequenos gestos quase imperceptíveis, de mínimos detalhes e diálogos econômicos que transcorrem em campo e contra/campo e com câmera baixa, na altura dos olhos, Yamada por sua vez imprime à sua versão algum ‘dinamismo’ à narrativa e assim a torna mais ‘comercial’.
Nos dois filmes os recados são os mesmos. Quase sempre os idosos são um estorvo para a família; e é fora dessa família de origem onde por vezes encontram algum afeto, paciência e atenção – no caso, nos personagens de uma nora e da jovem vizinha.
Há, no entanto, um diálogo criado por Ozu e seu roteirista parceiro de tantos outros filmes, Kôgo Noda, quase ao fim da narrativa, que transmite a idéia central dos dois.
“Você não acha que a vida é decepcionante?” pergunta a jovem vizinha a Noriko, a nora afetuosa. “Acho sim,” Noriko responde.
É como na historia das três velhinhas inglesas na hora do chá. Uma delas dizia apenas: “Então era só isso”? E se referia à vida.
Fonte: Carta Maior