Não é demais lembrar a sabedoria de Mahatma Gandhi: “Olho por olho, e o mundo acabará cego”.
O modus operandi dos justiceiros e milícias, que era muito comum nos anos 1980 e meados de 1990, parece estar voltando à cena pública. Em julho de 1993, moradores de ruas, meninos e meninas foram atacados por uma ação policial nas escadarias da Igreja da Candelária, Rio de Janeiro; oito crianças morreram. O crime completou 20 anos de impunidade. No final de janeiro, a cena de um jovem negro, acorrentado com uma trava de bicicleta a um poste, nu, em plena Zona Sul (Flamengo) do Rio trouxe o debate de volta. Uma semana antes, o jornal Extra (acesse aqui: http://migre.me/hNq4P) divulgara o vídeo de um linchamento em Belford Roxo (RJ), à luz do dia.
Todos esses episódios de violência urbana, presentes na cena cotidiana das grandes cidades do país, recolocam com toda radicalidade um debate: qual o papel da imprensa ao cobrir esse tipo de evento? Qual a contribuição que se pode esperar dos profissionais da mídia (repórteres, comentaristas, apresentadores) ao narrar tais acontecimentos?
Destaco alguns fatos noticiados, à guisa de ilustrar essa reflexão. Começo pela capa da revista Veja (ed. 12/02/14, confira aqui: http://migre.me/hNqVq). A manchete destaca duas palavras, cercando a foto do jovem negro preso ao poste, no Rio: “Civilização/Barbárie”. Lamentavelmente, a abordagem (incluindo a reportagem, totalmente editorializada em oposição ao governo federal), perde uma excelente oportunidade de agendar o debate na sociedade. O jornalista e blogueiro Rodrigo Vianna é preciso na crítica:
“A ‘Veja’ expõe a imagem – chocante, lamentável, triste – do rapaz preso pelo pescoço num poste na zona sul carioca, e aproveita a cena não para refletir sobre a tradição oligárquica brasileira, não para pensar sobre nossa história de 300 anos de escravidão, ou sobre nossa elite que reclama de pobres nos aviões e clama sempre pela resposta fácil do liberalismo de araque e da violência de capatazes. Não. “Veja” usa a foto terrível em mais uma tentativa para desgastar a imagem do Brasil; e também – que surpresa – para culpar o “governo”. Que governo? Ah, não é preciso ser muito esperto pra descobrir… (Acesse aqui o texto completo: http://migre.me/hNrdU – grifo meu).
Outro episódio que provocou intenso debate, público e nas redes sociais, foi o comentário da jornalista e âncora do Jornal do SBT, Rachel Sheherazade. Apostando na abjeta linha “bandido bom é bandido morto”, lema da polícia mais violenta do mundo, a ROTA, de S. Paulo, ela defendeu: “A atitude dos vingadores é até compreensível. O Estado é omisso; a polícia desmoralizada; a Justiça é falha. O que é que resta ao cidadão de bem que ainda por cima foi desarmado? Se defender é claro. O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de ‘legítima defesa coletiva…” (assista aqui: http://migre.me/hNrwJ). Sheherazade conclui seu palpite infeliz com um desafio retórico mais lamentável ainda: “Aos defensores dos direitos humanos que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha. Faça um favor ao Brasil: adote um bandido”. A jornalista recebeu o repúdio de centenas de entidades que lutam pela paz e em defesa dos Direitos Humanos, no país, e de forma mais contundente, um pedido de abertura de Comissão de Ética, do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro. Para a entidade, a âncora do SBT violou dois artigos do Código de Ética profissional: Art. 6º (É dever do jornalista opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humano); e Art. 7º (O jornalista não pode usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime).
Uma distinção se faz absolutamente fundamental nesse ponto do debate. Valho-me do que escreveu o jornalista André Petry, ex-colunista de Veja (leia a íntegra aqui: http://migre.me/hNqAJ) ao questionar e responder: “Por que respeitar os direitos humanos do homicida se ele não respeitou os direitos humanos de sua vítima? A resposta é simples: o homicida viola os direitos humanos porque é bandido, criminoso, mas o Estado respeita os direitos humanos porque não é (ou não deveria ser) nada disso”. Isso marca o claro limite entre civilização e barbárie. Ou ainda como conclui Petry no mesmo artigo: “Os defensores dos direitos humanos – de negros, de mulheres, de crianças, de todos, inclusive de presidiários – são a consciência civilizatória do homem. Eles nos dão a esperança de um horizonte moral”.
O caminho do equilíbrio, do ponto de vista do compromisso da imprensa com os Direitos Humanos, me parece o adotado pela jornalista Monica Sanches do Jornal Hoje, TV Globo. Em reportagem veiculada na edição de 06 de fevereiro (Veja a íntegra aqui: http://migre.me/hNs8Q), essa opção é clara já na chamada da matéria pelo apresentador Evaristo Costa: “Um vídeo divulgado pelo jornal Extra mostra um homem matando um suspeito de roubo à luz do dia, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, no Rio. As tentativas de linchamento e agressões a suspeitos de crimes no Rio de Janeiro têm provocado debates nas redes sociais. A sociedade reage aos grupos que têm a pretensão de reprimir o crime e fazer o que é tarefa da polícia”.
Sem emitir juízo de valor, tampouco sem ceder ao senso comum e à barbárie do justiçamento, Sanches narra os acontecimentos, sem meias palavras: “São ações ilegais são feitas por grupos que querem fazer o papel da polícia, como as gangues que se organizam para, supostamente, defender bairros. Esta semana, 14 jovens foram detidos quando tentavam agredir dois moradores de rua no Aterro do Flamengo, também na Zona Sul. Em depoimento, dois rapazes disseram que estavam protegendo o bairro”. Ele encerra a matéria mobilizando um pesquisador que se opõe esse “olho por olho”.
O Jornalismo é filho legítimo da revolução das luzes, que embalou o sonho da humanidade contra os grilhões do feudalismo, nas lutas históricas por liberdade, igualdade e fraternidade. Em nome desse legado não pode, nem deve em nenhuma hipótese, abdicar de seu compromisso com a defesa dos Direitos Humanos e dos valores da civilização, até aqui duramente conquistados. Não é demais lembrar a sabedoria de Mahatma Gandhi: “Olho por olho, e o mundo acabará cego”.
(*) É jornalista, professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB) e pesquisador do Núcleo de Transformações sobre o Mundo do Trabalho (TMT) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (UFSC).
Fonte: Jornalismo Ciência Ambiente.