Acompanhadas por suas bases de apoio e por milhares de simpatizantes de todo o México e de diversos países do mundo, as comunidades zapatistas celebraram nos cinco Carocoles Rebeldes, o 20º aniversário do levante armado do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
Foi uma noite longa, com muita música e dança, onde comandantes compartilharam suas palavras. No Caracol II, zona alta de Chiapas, o Caracol mais próximo à cidade de San Cristóbal de las Casas, a comandante Hortensia proferiu: “completamos 20 anos de guerra contra um sistema social injusto, representado pelos três níveis de maus governos, fiéis marionetes do neoliberalismo”.
Ela argumentou que este sistema pretende despojar os povos indígenas de suas terras, de seus recursos naturais e desalojar de seus territórios de origem, assim como os zapatistas: “o mau governo faz o possível para nos perseguir, nos atacar em todos os aspectos, a fim de debilitar e destruir nossa organização e luta pela construção da autonomia”.
Em relação às duas décadas de levante, a comandante comentou: “aprendemos a viver e resistir de maneira organizada e estamos aprendendo a nos governar de acordo com nossas formas de pensar e viver, como faziam nossos pais e avós. Começamos a viver a autonomia.
Nos encontramos, os povos e as zonas zapatistas, para compartilhar nossas ideias e experiências. Assim entre todos, tratamos de melhorar nossos trabalhos e corrigir nossos erros”.
Sobre a defesa de seu território em resistência, argumentou que “os maus governos estão tentando retirar de nós as terras recuperadas em 1994, que estavam nas mãos dos grandes proprietários de terras que tão mal fizeram a nossos pais e avós”.
A comandante finalizou sua intervenção com uma chamada internacional de luta, por um mundo melhor onde caibam muitos mundos: “Temos as melhores armas para combater o mal, para lutar contra a morte e construir a vida nova para todos. Nossas armas são a resistência, a rebeldia, a verdade, a justiça e a razão que está ao nosso lado. Agora é tempo de fortalecer e globalizar a resistência e a rebeldia”.
Autonomia
Após a festa comemorativa, foi realizada, de 3 a 7 de janeiro, a terceira fase do primeiro nível do curso “A liberdade segundo os e as zapatistas”. A chamada escuelita foi um momento de ver e compreender, desde dentro, o exercício da construção real da autonomia, para compartilhá-lo com os de fora, como dizem os zapatistas.
Nas suas comunidades já não obedecem ao governo, nem são manipulados pelos partidos. Dizem que uma das condições para ser zapatista é estar em resistência e não receber dinheiro do governo. Nas comunidades onde convivem zapatistas e não zapatistas – a maioria priistas – fica claro como os projetos assistencialistas do governo, como o Programa de Certifi cación de Derechos Ejidales – Procede, Procampo e Oportunidades, têm conseguido romper com o sentido da vida comunitária.
Os não zapatistas, beneficiados pelos programas de governo, têm deixado de trabalhar a terra e compram dos zapatistas, seus vizinhos, seus alimentos como o milho e o feijão, ironia das ironias.
A estrutura do governo autônomo dos povos zapatistas está dividida em três níveis de governo: a zona onde está a Junta do Bom Governo (JBG), os Municípios Autônomos Rebeldes (MAREZ) e o nível local que corresponde às próprias comunidades ou bases de apoio. Baseia-se nos sete princípios do mandar obedecendo e nas seis formas de fazer política dos povos zapatistas: propor, analisar, estudar, discutir, opinar e decidir, assim como nos regulamentos internos de cada povo. Para os zapatistas, a instância máxima de decisão é a assembleia comunitária.
Seu projeto consiste numa autonomia de autonomias, ou seja, cada povo avança conforme suas necessidades, não sendo um processo igualitário, mas sim que pretende ser equitativo, que abarque um processo de autonomia integral, desde eles e por eles, e que contemple “outras” formas de democracia, educação, saúde, justiça e uma nova forma de cultura política, onde as mulheres participam em todos os projetos dos três níveis de governo, ainda que, como conta uma zapatista: “enfrentamos dificuldades, pois ainda existe machismo dentro da organização. Há companheiros que não entenderam ainda que nós mulheres já temos o direito de participar nas diferentes áreas de trabalho”.
Para impulsionar os trabalhos de autonomia, os zapatistas estão organizados em MAREZ por Conselhos Autônomos, que correspondem às tarefas de justiça, comissão agrária e juizado civil. Promotores e promotoras participam em diversas áreas do trabalho, como saúde sexual e reprodução, assim como as hueseras – mulheres que tratam doenças de ossos e articulações –, parteiras e uso das plantas medicinais – principalmente com a participação das mulheres.
A educação é dividida em várias áreas de conhecimento: matemática, espanhol – tendo em vista que o mais importante é não perder o aprendizado da língua materna-; e vida, meio ambiente e história. Há também as áreas de comércio, vigilância e comunicação, que são os vídeos e rádios comunitárias. Todos os cargos são rotativos, não remunerados e eleitos pelas comunidades: “eleger as autoridades e retirá-las quando necessário”.
Os trabalhos coletivos, organizados por um presidente, um secretário e um tesoureiro – que podem ser assumidos por ambos os sexos – funcionam como um mecanismo de organização, resistência e fortalecimento da identidade. Alguns dos trabalhos coletivos realizados nas comunidades são: a produção de diversos alimentos, a criação de gado, as granjas, a confecção de artesanato, as tiendas – cooperativas que vendem produtos que os zapatistas não produzem – padarias, hortas agroecológicas, onde cultivam sem o uso de agrotóxicos ou transgênicos. Cada projeto corresponde de acordo à necessidade de cada comunidade.
Nesse processo de construção da autonomia, há duas décadas, a contrainsurgência é permanente e não somente se mostra como uma ofensiva militar e paramilitar, mas como ataques: políticos, econômicos, culturais, psicológicos e por parte dos meios de comunicação que se esmeram em reduzir o movimento em meras cinzas do passado, em esquecimento.
Por isso, a luta zapatista é integral e tem que ser construída constantemente. Eles falam: “a maior arma que temos é a resistência. Há que organizá-la em todos os níveis”.
Aos 20 anos da insurreição armada e 30 desde sua formação clandestina nas montanhas de Chiapas, os zapatistas seguem no seu ritmo, escutando e fortalecendo a autonomia desde suas comunidades. Seu tempo não é o nosso, para eles, a hora é a frente de combate do sudeste. Os zapatistas caminham como os Caracóis, devagarzinho, mas para frente.
Tradução: Cecilia Piva.
Fonte: Brasil de Fato.