Dois encontros com Fausto

Por Carla Fernanda da Silva.

Viajar, adentrar em outras cidades e tornar-se um voyeur do viver dessa imensa diversidade de gentes e culturas que há pelo mundo é um prazer inestimável. É também uma forma de ascese, sendo necessário despir-se de sua cultura e pré-conceitos para deixar-se a contemplar e descobrir a cidade que se despe para nós, só assim que nos tornamos algo mais nessa experiência.

Em Frankfurt, para além da marginal e curiosa flanerie pelas ruas do comércio árabe, indiano e chinês, e pelas ruas de cassinos e bordéis, fomos atraídas também por um destino que a cidade mostra com orgulho: a casa de Johann W. Goethe. Os quatro andares da intocada Goethe Haus nos impressionou pela realidade aristocrática do cotidiano do escritor, materializada nos dourados e pesados móveis e castiçais, estampas e quadros, na sua sala de música e nas belas encadernações de seus livros.

Não foi difícil confundir o autor com sua obra e imaginar o entediado Fausto perambulando pela sala de jogos, enquanto discutia com o cínico Mefistófeles, insolentemente sentado em uma das cadeiras de veludo vermelho.

casa de jogos - dois encontros com Fausto

Em conversas sussurradas – como se a casa pudesse nos ouvir – compartilhamos lembranças e imagens de sucessivos ‘Faustos’ vistos por nós em filmes e em peças de teatro, como o Fausto de Pushkin, interpretado por Ana Carbatti na peça ‘Pequenas Tragédias’, que tanto nos impressionou. Na ‘Goethe Haus’ vivenciamos uma nova experiência, em que o amálgama de viagens e memórias criou um encontro com um Fausto em corpo feminino e pele negra que muito surpreenderia Goethe. Em nossa imaginação, as palavras de Mefistófeles reverberaram, por entre os luxuosos cômodos da casa:

‘Se bem me lembro, finalmente o senhor me chamou do fogo, um arlequim pra acossar a chatice. E eu, demônio, mesquinho, fiz o que pude pra revigorar e vivificar teus esforços; trouxe sereias, bruxas também, e pra quê? Tudo em vão!’

Perturbadas pela riqueza da casa e pelo viver burguês do escritor, despedimos-nos de Goethe e de Frankfurt, mas não de Fausto, que a partir dali nos acompanharia em nossa viagem.

Nosso segundo encontro com Fausto foi em Praga; após muito caminhar pela Cidade Velha, percebemos que éramos ‘seguidas’, por um misterioso senhor com trajes do século XVI, na maior parte do tempo despercebido por nós, pois se mantinha muito bem escondido nas reentrâncias dos prédios. Era o ‘fantasma’ de Johannes Faust, o real Fausto, e não o personagem de Marlowe, Goethe, Pushkin, etc., tantas vezes inventado e reinventado. O esquecido ‘Fausto de Praga’, que inspirou esses escritores, agora reivindicava de nós reconhecimento e, sobretudo, um instante de atenção para ouvi-lo contar sua história, cobrando – como Mefistófeles – o sucesso que tantos obtiveram com o seu limbo.

Foi na rua Melantrich que encontramos o Dr. Johannes Faust, médico e alquimista alemão, que muito viajou pela Bohemia, Baviera e Saxônia até se estabelecer em Praga, onde morreu por volta de 1540. Atualmente ocupada por prédios ‘novos’ que vão do século XVII ao XIX e por uma feira central, cujas bancas de frutas aos poucos sucumbem aos souvenires da cidade, em nada lembra a rua onde viveu, destruída por um grande incêndio que atingiu Praga um ano após a sua morte. Muito menos a ostentosa ‘Casa de Fausto’, na Namesti Karlova, onde nunca esteve. ‘Lendas! Parece que minha vida é sempre era consumida por lendas e esquecimento.’ – desabafou Dr. Faust.

Numa época em que as mulheres e homens eram julgados como hereges porque pesquisavam a natureza e ousavam questionar as falácias da crença humana, para fugir da fogueira optavam pela errância de cidade em cidade. Ou então moravam em lúgubres casas, onde realizavam seus estudos, casas que logo ganhavam suas lendas e mistérios cochichados por entre ruas e pubs. Assim aconteceu com Johannes Faust, não apenas sussurros medrosos, mas também um livro escrito pelo pastor protestante Johann Gast que escreveu sua biografia e sedimentou sua imagem como necromante, mágico e ocultista. A perseguição empreendida aos ‘feiticeiros’ pelas igrejas protestantes criou o pacto entre Fausto e o Diabo que, a partir daí, transformou-se em um personagem literário e exemplo moral dos perigos que a curiosidade e o oculto podem infringir às pessoas.

Para nós, Johannes Faust lamentou-se por seu nome na história não aparecer como um estudioso dos astros, da antiguidade grega e da alquimia, como Paracelso – que supostamente teria sido seu aluno – Copérnico ou Giordano Bruno, mas somente como aquele que compactuou com o diabo. Atormentado, seguiu seu caminho por entre os turistas e moradores de Praga, buscando entre eles alguém mais para ouvir a sua história e quem sabe, interessar-se por seus estudos, pessoas que pudessem ver o homem Johannes Faust e não apenas o personagem.

O que o nosso caro Johannes Faust não compreendeu é que pela literatura, sobretudo de Goethe, ele conquistou a eternidade. Diferentemente de seus contemporâneos, ele segue sendo reinventado e ressignificado, permitindo aos inúmeros leitores um encontro com sua alma sedenta de conhecimento, sempre possibilitando uma reflexão sobre os tormentos do viver humano. E com certeza os mais curiosos procurarão para além da obra literária – e encontrarão o real Johann Faust que inspirou tantos escritores, dramaturgos e cineastas.

Fonte: Escritores Livres.

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