Vou começar o texto com algumas informações preliminares. Caso você não goste delas, se sinta ofendido, não se interesse pelo texto ou coisa parecida, por favor, não perca seu tempo com essa leitura e muito menos com comentários agressivos. Obrigada.
Escrevo aqui com o intuito de descrever situações vividas por mim, portanto, não incluo aqui a voz de ninguém que não seja eu mesma.
Esse texto não pretende tratar das cotas raciais, mas não porque eu não concorde com elas (eu concordo) e sim porque não sou negra, mulata, parda, indígena, afrodescendente ou amarela. Assim sendo, nunca sofri preconceito racial de nenhum tipo e, portanto, não tenho condições de exprimir com fidelidade os sentimentos de um pré-vestibular que tenha passado por isso.
Presto Medicina. Estudei na ETEC Parque da Juventude durante meu ensino médio. No meu terceiro ano (ano passado), estudava de manhã no colégio e fazia cursinho no Anglo Tamandaré à tarde. Estudei de domingo a domingo. Acordava às 6h da manhã, assistia a aulas no colégio até 12h30, assistia a aulas no Anglo das 14h20 até as 18h20. Em casa, estudava da hora que eu chegava (19h) até meia noite, as vezes uma hora da manhã. Todos os dias.
De sábado estudava. De domingo estudava. Jantava ao mesmo tempo que estudava. Estudava no ponto de ônibus. Estudava em visitas à casa dos meus avós. Estudava durante a aula de Educação Física enquanto meus colegas jogavam futebol. Tenho o orgulho de dizer que fiz todas as minhas Tarefas Mínimas e Complementares. Cabulei apenas algumas das últimas aulas de Texto do cursinho, em dezembro, quando já sabia que não havia passado em nenhuma faculdade. Fui em todas as aulas de inglês. Fazia minhas TMs e TCs durante as aulas do colégio, enquanto o professor dava aula de outra matéria.
Só que eu não sou um ser perfeito (muito longe disso), então eu dormia em algumas aulas no colégio também. E todas essas coisas que eu fazia me prejudicaram de inúmeras formas: Sei que muitos professores se decepcionavam comigo por eu estar dormindo ou fazendo outras coisas enquanto eles davam aulas no colégio e que muitos amigos se ressentiam pelo fato de que eu não lhes dava atenção. Tive problemas com dor de cabeça durante o ano por conta de falta de sono, emagreci quatro quilos, briguei com meus pais inúmeras vezes, deixei de falar com meus avós o quanto deveria, deixei de conversar com meus irmãos e com o meu primo (que é como um irmão pra mim também), deixei de sair com meu namorado diversas vezes, impedi que meus pais fossem à praia de fins de semana porque eu precisava estudar.
Resumo? Sufoquei minha vida. De verdade. Comecei a ser mais amarga ou agressiva com pessoas que não mereciam minha agressividade e tudo isso porque eu via que todo meu esforço, minha luta, minha loucura não levava a lugar nenhum, porque eu corria em círculos, sem saber a diferença entre velocidade angular e escalar, porque não entendia absolutamente nada de elétrica, porque não conseguia resolver exercícios de estequiometria, porque não fazia a mínima idéia da diferença entre pretérito perfeito e imperfeito, mesmo depois de fazer todos os exercícios, todas as tarefas, todas as leituras (Conhece os intocáveis? Eu li todos eles. TODOS.)
Resultado? Ah, tirei 58 na Fuvest. Uma nota incrivelmente decepcionante e insuficiente pra quem presta medicina. Me revoltei com a minha escola, que eu tinha amado tanto durante meu primeiro e segundo ano pois ela havia me dado amigos, professores maravilhosos e uma liberdade fantástica, porque quando resolvi que ia estudar lá (e tive que passar em um Vestibulinho pra isso) fui achando que eu estaria bem preparada pro Vestibular, porque vende-se uma ideia de que essas escolas são tão boas quanto escolas particulares, no âmbito de preparação para os exames.
E é claro, me arrependo muito dessa revolta, porque grande parte do que eu sou hoje se deve à experiência maravilhosa que tive estudando no PJ.
Mas essa história vendida é falsa. Eu não posso de maneira alguma comparar o ensino que eu tive com o ensino que um aluno do Dante, Bandeirantes, Etapa, Mendel, Arquidiocesano ou de qualquer uma dessas “escolas-celebridades”.
Escolas que eu nunca poderia ter estudado, pois para pagá-las seria necessário que meus irmãos não estudassem ou que minha família vivesse de favor na casa de alguém. E não porque eu sou pobre, miserável. Eu não sou. Eu tenho uma vida ótima. Mas eu não tenho quase três mil reais para gastar por mês em um colégio. Tenho o dinheiro da mensalidade do Anglo, que com o meu desconto, não paga nenhum colégio de ensino médio minimamente respeitável.
E esse texto é pra você, aluno de um desses lugares (que depois foi fazer cursinho no Anglo), porque você que é o verdadeiro concorrente de medicina. Você que só está no seu primeiro ano de cursinho, que fez intercâmbio, viajou com a família pra Europa, que vai ganhar um carro do papai quando entrar na faculdade, que não estudou no seu terceiro ano porque estava preocupado com a sua viagem para Porto Seguro. Você que reclama dos professores do Anglo porque seus professores do colégio ficavam fazendo gracinha na aula e você acha que cursinho tem que ser engraçado.
Você que não faz nem as Tarefas Mínimas e que não comparece aos simulados de final de semana. Você que estuda 3 horas por dia e sai toda sexta feira com seu namorado. Você que cabula aula de química porque sabe tudo de equilíbrio químico e acha mais interessante sair com os amigos pra ir no bar porque, afinal de contas, você precisa descansar. Você que não assiste aula de redação porque sua escola te deu uma aula melhor do que a do Anglo. Você que não deixou de conversar com seus pais, seus avós, seus amigos…
Você que não sufocou sua vida com um monte de estudo louco. Você, caro colega, que nesse seu primeiro ano de cursinho estudou de maneira “light”, que não sacrificou sua saúde e que tirou muito mais do que eu no meu primeiro ano de Fuvest.
Você que tirou 69 e está revoltado porque os alunos de escola pública, como eu, se tirassem 69 teriam uma esmola de cota que os colocariam a sua frente. Alunos de escola pública que estudaram tanto quanto eu.
Alunos que, como eu, ficaram quase o segundo ano inteiro sem ter aula de física, mais de 4 meses sem ter aula de espanhol. Alunos que, como meus colegas que inauguraram a ETEC Parque da Juventude, receberam do grandiosíssimo governador do Estado de São Paulo uma escola sem ventiladores ou sem instrumentos de laboratório, que serviu como propaganda política por diversos anos, sendo que todos os equipamentos necessários para o bom funcionamento da escola foram conseguidos com o trabalho duro da Associação de Pais e Mestres, sem o auxílio desse mesmo “governo” que nos dá um bônus nos vestibulares e que permite que nossos professores, tão esforçados e trabalhadores, ganhem a fortuna de 10 reais a aula/hora.
Você, respeitoso colega, provavelmente teve aulas de ótica, de ondulatória, de eletromagnetismo, de embriologia, de botânica, de filosofia, de história do brasil pós República Velha, de geografia física da Europa, dos Estados Unidos e da China e tantas outras aulas essenciais para qualquer um que quer prestar vestibular. Eu não tive. Meus colegas não tiveram. Os seus livros são comprados das melhores editoras, nos melhores lugares. Os meus são fornecidos pelo governo, e não posso negar que muitos são excelentes, mas não posso deixar de dizer que muitos são péssimos.
E você, amável colega, fluente em inglês, civilizado, viajado, carregando seu Iphone no bolso por ai, você é o primeiro a cuspir que é contra as cotas de escolaridade pública. Você é o primeiro a dizer que é um “absurdo o cara sair na frente só porque ele estudou em uma escola pública”, você que tem a cara de pau de dizer que “as pessoas estudam nessas escolas só para ganhar cota” e que “essas pessoas roubam nossas vagas, destroem os nossos sonhos”. Você, meu amigo, deve começar a pensar melhor no que diz.
E eu estou falando tudo isso de uma ETEC, que as pessoas tem que realizar prova pra entrar. Eu estou digitando isso do meu computador, na minha casa, confortável na minha cadeira. Eu sou privilegiada. Não como você, mas sim, sou privilegiada. Sou privilegiada porque meus professores eram interessados, bem formados. Tive uma professora de biologia no primeiro ano que deixou de trabalhar na área de pesquisa para dar aulas e que dá aula no Bandeirantes, professora que me ensinou citologia como ninguém. Tive professores de física e matemática que não desistiram de tentar dar aula, mesmo quando a classe se mostrava visivelmente desinteressada.
Tive o privilégio de ter redações corrigidas por uma professora que já corrigiu redações no Anglo. Tive aulas de Projeto Técnico Científico, que me ensinaram o que era uma pesquisa científica e que me será indiscutivelmente importantíssimo na minha vida acadêmica. E essa mesma professora, que me ensinou tudo isso tão bem, conseguiu me fazer entender a luta pela terra, a cartografia e os horizontes do solo de maneira fantástica. Todos esses professores ganham 10 reais por aula. Dez reais é quanto você gasta na cantina do Anglo com seu chá e seu croassaint.
Essa minha escola pública me levou até a Unicamp de Portas Abertas e lutava pra tentar nos ensinar o máximo que podia. Esse minha escola aprovou inúmeros colegas meus na Unesp, na Usp e na Unicamp. E mesmo assim, querido amigo, colegas que tiveram que ralar muito mais do que você pra tirar uma nota menor do que a que você tirou na sua primeira Fuvest, no seu terceiro ano de colegial.
Agora, pense nas outras escolas. É, aquelas, abandonadas por ai. Aquelas na periferia. Aquelas onde não só os ventiladores faltam, mas os livros, as carteiras e os banheiros também. Aquelas nas quais os alunos não tem pai, não tem mãe. Não tem o que comer na janta. Não tem roupas para usar pra ir à escola. Aquelas que os professores ganham menos de 10 reais por aula. Aquelas em que muitos alunos não sabem o que é uma Fuvest.
Pense nos adolescentes da nossa idade, que foram ao posto de saúde e conheceram um médico legal e sonham em ser médicos. Essas pessoas têm menos oportunidades que eu e muito menos que você. Essas pessoas não roubam suas vagas. Essas pessoas muitas vezes não conseguem tirar a nota considerada mínima pela Fuvest. Essas pessoas não tem condições de estudar no Anglo Tamandaré. Pela cabeça dessas pessoas nem passa a idéia de ir estudar no exterior porque “Faculdade no Brasil tá difícil”.
Eles, eu, nós, os cotistas em geral, estamos começando a corrida muito depois de você. Estamos inacreditavelmente atrasados. Não estamos pegando um “boost” na sua frente. Não estamos na sua frente. Talvez nunca estejamos. Você consegue entender isso? Estamos atrás, quilómetros atrás, descalços, na chuva, sem protetor solar, enquanto você corre em uma bicicleta de marcha, com seu boné importado.
Então, da próxima vez que você decidir cacarejar sobre a injustiça das cotas, lembre-se disso e cacareje sobre a injustiça que sai de seus lábios.
Fonte: Diário do Centro do Mundo.