O ano velho se vai em meio a névoa. A garoa e o frio cobrem o local onde o Exército Zapatista de Libertação Nacional celebrou os 20 anos do levante.
Por Eduardo Febbro.*
A voz dos símbolos se cala quando aparece a neblina. Espessa e crescente a medida que a estrada de montanha sobe em direção à comunidade de Oventic, uma das cinco juntas de bom governo administradas pelos zapatistas.
Estas são terras rebeldes e muito pobres. Aqui, as palavras cheias de símbolos e poesia do subcomandante Marcos não têm lugar. Essa é a realidade. Respira-se a dupla força da humildade e da dignidade. Hoje há festa. O ano velho se vai em meio a névoa, a garoa e o frio cobrem o local onde o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) organizou a celebração dos 20 anos do levante zapatista (1994-2014).
O ano novo pede passagem entre lembranças, músicas de protesto, chamados à rebeldia e a escandalosa situação na qual ainda vivem os indígenas da região. Combate e pobreza. “Los de abajo vamos por los de arriba”, canta uma rapper vinda dos Estados Unidos. Um grupo musical do EZLN com o gorro cobrindo o rosto entoa canções zapatistas. Não há tempo nem espaço para a nostalgia. As pessoas abrem passagem entre o barro e a neblina. Há muito por fazer, por construir e resistir.
O EZLN acusa as autoridades de manter uma política de guerra, uma pressão permanente de desgaste cuja meta consiste em marginalizá-lo na pobreza e tirar as terras que eles recuperaram em 1994. A experiência zapatista tem várias leituras. Muitas podem ser certas individualmente, mas nenhuma abarca a complexidade de um movimento indígena armado que conseguiu instalar na paisagem política um sistema de autogoverno que engloba cerca de mil povos agrupados nos municípios autônomos. Estas zonas são administradas com sistemas próprios de saúde, educação, cultivos agrícolas autossuficientes, segurança, distribuição de café, artesanatos ou mel.
Uma boa parte das famílias choles, tzeltales, tojolabales ou tzotziles não recebe o amparo dos programas sociais governamentais porque não respondem inteiramente às regras estabelecidas pelas autoridades, entre elas, por exemplo, o pagamento de impostos pelas terras. Certa imprensa urbana e ocidental faz um balança injusto da revolução zapatista. Apontam o EZLN como um mau gestor de suas comunidades, que implementou uma revolta que, duas décadas depois, é estéril. É um olhar muito estreito desse vasto conflito. Chiapas é um modelo em pequena escala da arrasadora injustiça no mundo.
É preciso viver ou vir a estas terras para beber o frio e estreitar a hostilidade do clima, a dificuldade para renovar os cultivos, o olhar sempre profundo e digno das comunidades maias. “Estamos aprendendo a nos governar de acordo com nossas formas de pensar e viver. Estamos tratando de avançar, de melhorar e nos fortalecer, homens, mulheres, jovens, crianças e anciãos. Como há 20 anos, dizemos já basta”. A Comandante Hortensia leu com voz segura o comunicado do EZLN. Parada no centro do cenário, com o rosto coberto, a comandante reiterou que não haveria recuo no processo de autonomia.
“Existimos e aqui estamos. Há 20 anos não tínhamos nada, nenhum serviço de saúde e educação de nosso povo. Não existia nenhum nível de autoridade que fosse do povo. Agora temos nossos próprios governos autônomos. Bem ou mal conduzidos, mas é a vontade do povo (…) Estamos tratando de melhorar nossos sistemas de saúde, educação e governo. Está claro para nós que falta muito por fazer, mas sabemos que nossa luta avançará. E aí estão essas zonas de autogoverno, efetivas, dignas, ameaçadas. É uma verdadeira guerra de extermínio. Há dezenas de milhares de soldados que estão ocupando as terras que nos pertencem. Apesar de tantas maldades, aprendemos a sobreviver e resistir de maneira organizada”, diz a comandante.
Chiapas é uma reinvenção em movimento, descendente daquela madrugada de primeiro de janeiro de 1994 quando os zapatistas ocuparam o palácio municipal e o esvaziaram. Na sacada da prefeitura apareceu o comandante Felipe, um tzotzil que leu com o rosto descoberto o primeiro comunicado do EZLN, a famosa Declaração da selva Lacandona. Aquelas palavras tinham uma ênfase nova. Traziam ar puro aos já surrados discursos revolucionários. Os zapatistas exigiam algo distinto: “tudo para todos, nada para nós”. Não falavam em nome de Marx, ou do indigenismo puro, Foram, a sua maneira incrivelmente adiantada, os primeiros indignados da história moderna. Por isso, suas palavras nos envolveram a todos com seu porta-voz como estandarte, o Subcomandante Marcos, o único mestiço daqueles tempos que se somou aos indígenas.
A passagem de 31 de dezembro a 1º de janeiro pegou de surpresa ao presidente mexicano Carlos Salinas de Gortari. O mandatário estava festejando a aplicação do Tratado de Livre Comércio da América do Norte. O ministro da Defesa o avisou que um grupo armado acabava de tomar San Cristóbal de las Casas e outras localidades de Chiapas. Salinas mandou o exército. Os combates duraram cerca de duas semanas. Após centenas de mortos, Carlos Salinas de Gortari, pressionado por seu sócio norte-americano Bill Clinton, decretou um cessar-fogo com uma oferta de perdão. O Subcomandante Marcos respondeu com uma memorável declaração:
Do que temos que pedir perdão? Do que vão nos perdoar? De não morrermos de fome? De não ficarmos calados em nossa miséria? De não ter aceitado humildemente a gigantesca carga histórica de desprezo e abandono? De termos nos levantado em armas quando encontramos todos os outros caminhos fechados? De não termos nos atido ao Código Penal de Chiapas, o mais absurdo e repressivo do qual se tem notícia? De termos demonstrado ao resto do país e ao mundo inteiro que a dignidade humana ainda vive e está em seus habitantes mais empobrecidos? De termos nos preparado bem e de modo consciente antes de iniciar? De termos levados fuzis ao combate, ao invés de arcos e flechas? De termos aprendido a lutar antes de fazê-lo? De sermos todos mexicanos? De sermos majoritariamente indígenas? De chamar todo o povo mexicano a lutar de todas as formas possíveis pelos que nos pertence? De lutar por liberdade, democracia e justiça? De não seguir os padrões das guerrilhas anteriores? De não nos rendermos? De não nos vendermos? De não trairmos?
Um rincão do país esquecido por todos estragou a festa do tratado ultraliberal, e um novo ator, os povos indígenas do país, se convidou para as cerimônias, somando-se aos reclames de justiça, igualdade e reconhecimento que sempre estiveram ausentes. Fizeram isso com as armas e a palavra. A mensagem zapatista correu o mundo. Tudo isso se respira na neblina úmida de Oventic, longe, muito longe da análise dos intelectuais urbanos que não chegam a estas alturas nem envoltos em cobertores, muito longe dos editoriais falsos, da covardia disfarçada de valentia ideológica, das agressões neoliberais dos porta-vozes sectários que residem em bairros confortáveis, das estatísticas e das cifras que cercam a suspeita de um fracasso.
A resistência sempre é custosa. O EZLN e os indígenas pagam o tributo da autonomia que tentam implementar. Há erros e eles existirão sempre. A Comandante Hortensia lembrou que “nós temos que trabalhar e nos organizar mais. Já não se trata só de resistir, mas sim de organizar a resistência em todos os níveis. Pensam que com sua estratégia vão nos calar, mas se enganam. Aqui estamos e aqui seguiremos”. E aqui estamos nesta meia-noite humilde e grandiosa. Fria e cativante. O ano novo desveste o anterior. Virão novas neblinas. Mas esta voz autêntica, estes rostos e estas mãos marcadas pela dignidade e pelo trabalho, já são mais um tecido do patrimônio da rebeldia política da humanidade.
*Da Carta Maior
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Foto: Moysés Zúñiga Santiago
Fonte: Brasil de Fato