Nos movimentos 2.0, as formas são múltiplas

Ocuppy Wall Street, 15-M, Revolução no Egito, jornalismo e ativismo, crise das representações partidárias. Há algo novo que não começou agora, mas que parece estar ficando cada vez mais forte.

Por Renato Rovai.

jornalismo independente

Desde janeiro de 1994, quando o Exército Zapatista de Libertação Nacional divulgou sua Primeira Declaração da Selva Lacondona pela rede mundial de computadores, começou a se constituir uma outra esfera pública. A internet ainda vivia seus primeiros momentos, e os grupos e listas de debates eram os principais mecanismos de divulgação daquele movimento que nasceu no mesmo dia em que EUA, México e Canadá assinavam um acordo de livre comércio, o Nafta. Mesmo assim, foi tamanha a força da rede para tornar os zapatistas conhecidos em várias partes do mundo que a sua principal liderança, o subcomandante Marcos, se tornou, para alguns, o primeiro super herói da internet.

Para que isso acontecesse naqueles primeiros momentos foi fundamental a ação de jornalistas independentes mexicanos e mesmo de outros países da América Latina. Eram colaboradores do La Jornada, do Página 12 e de outros veículos independentes que postavam as mensagens dos zapatistas na rede. E não o próprio subcomandante Marcos, como o folclore político da época fazia crer.

Ainda na década de 1990, mais precisamente em novembro de 1999, outro movimento também atraiu muita a atenção, tanto pela sua força organizativa quanto pela maneira como conseguiu romper o cerco da mídia tradicional comercial. Os protestos durante a cúpula da OMC na cidade de Seattle, nos EUA, se tornaram um marco das manifestações que viriam a ser denominadas pelos veículos tradicionais de comunicação de anti-globalização, mas, na verdade, não questionavam a globalização da sociedade e sim a globalização econômica pelo viés neoliberal.

Aquele movimento que viria a ser conhecido como a A Batalha de Seattle levou às ruas dessa cidade estadunidense aproximadamente cem mil pessoas, desde ativistas de causas ambientais a sindicalistas, e impediu a realização daquela cúpula. Naquele evento surgia o Indymedia (Centro de Mídia Independente), a primeira experiência de construção de cobertura jornalística colaborativa de um evento, que viria a se tornar um site com versões em mais de uma centena de países.

O Indymedia nasceu da indignação dos ativistas que consideravam as coberturas dos meios comerciais de comunicação distorcidas e contrárias às suas causas. O projeto original consistia num site para a publicação livre, no qual jornalistas e colaboradores de veículos de comunicações alternativos poderiam publicar seus textos, fotos e vídeos durante os protestos. O acordo é que deveriam fazê-lo em copyleft – contraposição ao copyright – e que permite a reprodução de textos desde que citada a fonte. No entanto, durante os protestos, o Indymedia foi utilizado não só por jornalistas. E os relatos dos que participaram do movimento foram fundamentais para que o site tivesse sucesso na cobertura da Batalha de Seattle. Segundo divulgado no próprio site, a iniciativa teve 1,5 milhão de acessos naquele episódio.

Outro importante movimento para o qual a internet foi fundamental, tanto do ponto de vista organizativo como de difusão de informação, foi o Fórum Social Mundial. Em janeiro de 2001, 20 mil pessoas de 117 países se deslocaram para a cidade de Porto Alegre (RS) para discutir alternativas à globalização neoliberal. Ou para debater o Outro Mundo Possível, que viria a se tornar o slogan do movimento.

O Fórum Social Mundial, naquela sua primeira edição, se realizou exatamente na mesma data do Fórum Econômico Mundial. A intenção dos seus promotores era a de se fazer um contraponto às propostas dos que se reuniam nos Alpes suíços, mais especificamente na cidade de Davos. Durante toda a articulação do evento de Porto Alegre, porém, poucos veículos tradicionais deram algum destaque à iniciativa. O único jornal com relevância internacional a tratar do assunto foi o Le Monde Diplomatique. Na imprensa brasileira, apenas notas de rodapé. Quando o evento começou, jornalistas desinformados chegavam a Porto Alegre sem a menor ideia do que aquilo significava. E mesmo durante o evento a cobertura da imprensa comercial tradicional brasileira foi caricata. As reportagens abordavam assuntos como a cachaça Che Guevara ou a manifestação de pelados no acampamento da juventude.

O curioso é que daquele 1º FSM participaram 1.870 jornalistas credenciados, quase todos vinculados a veículos independentes e alternativos que, entre outras iniciativas, criaram a Ciranda da Informação, que permitia a publicação de fotos, matérias e produções jornalísticas, desde que também associadas à prática do copyleft. Em modelo colaborativo, as reportagens iam sendo traduzidas para outras línguas e republicadas em diversos veículos mundo afora, permitindo não só que informações do Fórum Social Mundial pudessem ser divulgadas com maior visibilidade, como também estimulando a constituição de uma rede informal de veículos independentes e contra-hegemônicos. Foi naquele primeiro FSM que nasceu a Fórum.

Os acontecimentos acima foram fundadores do ativismo jornalístico nas redes digitais. Mas é bom que se diga que o jornalismo ativista não nasceu na rede. Pascoal Serrano, editor e fundador do site Rebelion, acaba de lançar um livro na Espanha cujo título é “Contra la Neutralidad”. Serrano retoma os trabalhos de John Reed, Ryszard Kapúscinki, Rodolfo Walsh, Edgar Snow e Roberto Capa para defender sua tese de que o jornalismo não pode ser indiferente. Que não pode ser um debate sobre formato e formas de apresentação. E que os trabalhos e a história desses jornalistas e do fotógrafo Roberto Capa comprovam o quanto a suposta neutralidade não é algo a ser perseguido do ponto de vista profissional.

O debate sobre jornalismo e ativismo ganhou novos contornos neste 2011 com os movimentos 2.0. Ou seja, com a entrada em cena de um novo tipo de movimento social que saiu da rede para invadir as ruas.

Nos últimos anos, houve uma ampliação significativa da circulação de informação contra-hegemômica. E isso levou a mídia tradicional comercial a diminuir sua capacidade de pautar a sociedade, ao mesmo tempo que modificou o fazer jornalístico. Hoje não é necessário participar de empresas verticalizadas para atuar como produtor de informação. Vive-se um momento de passagem da mídia de massa para um tipo de organização mais horizontal, que permite um jornalismo mais autoral e independente, muito mais transparente e posicionado. O Occupy Wall Street, o 15 M da Espanha e a Revolução no Egito foram três movimentos que certamente entrarão para a história dessa nova fase em que a circulação de informação independente e posicionada é parte do movimento. Ela não produz o movimento. Mas contribui para a sua construção e significação.

A ação dos ativistas digitais no Egito, por exemplo, foi articulada pelo Facebook, rede social que, dadas as suas características, permite a participação de ampla camada da sociedade. Diferentemente do Twitter, mais utilizado por aqueles que estão em busca de informação, o Facebook se tornou a plataforma de toda a família. É um álbum de fotos, uma agenda de amigos, um lugar de recados e também um espaço para se exercer o voyeurismo. E mesmo quando as pessoas só entram no Facebook para saber o que está acontecendo na vida dos outros, às vezes se deparam com histórias que as levam a uma causa comum. Foi o que aconteceu no Egito quando as fotos de Khalled Said, jovem que foi violentamente torturado e assassinado por postar um vídeo de violência policial no Facebook, vieram à tona no mesmo Facebook.

No caso do movimento Occupy Wall Street o que pouca gente sabe é que as manifestações foram impulsionadas pela revista canadense Adbusters, veículo anticonsumista, mantido por leitores e cuja tiragem é de 120 mil exemplares. Foi uma nota publicada em 13 de julho que lançou o desafio para que ativistas ocupassem Wall Street no dia 17 de setembro:

Chegou a hora de agir contra o maior corruptor da nossa democracia: Wall Street, a Gomorra financeira da América.

Em 17 de setembro, nós queremos ver 20 mil pessoas como um tsunami invadindo a baixa de Manhattan, montando tendas, cozinhas, barricadas pacíficas e ocupando Wall Street por alguns meses. Uma vez lá, vamos repetir incessantemente uma demanda simples em uma pluralidade de vozes. (…)

É hora de democracia, não de corporotucracia. Estamos condenados sem ela.

A ação do Ocuppy Wall Street se multiplicou em diversas partes dos EUA e do mundo. E mesmo no Brasil, cidades como São Paulo e Rio de Janeiro aderiram ao movimento. E em todos os lugares onde barracas ocupam espaços públicos, a informação tem sido a arma principal do movimento. Uma Carta Aberta do Occupy Dallas publicada no blogue do movimento é ilustrativa dessa ação pela informação, por um novo modus operandi do que talvez venha a ser a constituição de um novo jornalismo público, do qual pretendo tratar num texto futuro.

SEGUNDA CARTA ABERTA do Occupy Dallas, à Polícia

Ao Departamento de Polícia de Dallas, Texas

Aos cuidados do Tenente Anthony W. Williams

Depois de examinar vídeos e de conversar com membros de sua organização policial, vimos que o senhor era o oficial que comandava a operação policial contra nossa passeata de ontem, que começou na praça Bank of America.

Esperávamos que lá estivesse um comandante de operação policial contra cidadãos desarmados capaz de manter o equilíbrio emocional. O que vimos foram vídeos em que o senhor aparece pessoalmente algemando manifestantes. Por isso, essa carta aberta dirigida ao Departamento de Polícia de Dallas vai endereçada ao senhor.

Primeiro, oferecemos alguns fatos, para seu conhecimento.

Não somos uma revolução violenta. Estamos tentando evitar uma revolução violenta.

(…) Ontem, vários policiais comandados pelo senhor escolheram nos atacar com violência. Há vídeos gravados em que se veem cidadãos empurrados por policiais, das calçadas públicas onde caminhavam, para o meio da rua. Um policial protegido por escudo anti-tumultos, com um cassetete elétrico, espanca cidadãos que se manifestavam. Empurrados para o meio da rua e cercados por meia dúzia de policiais, muitos manifestantes foram atacados com sprays de pimenta por uma policial feminina que carregava uma câmera. Essa policial pode ser vista na fotografia que acompanha essa carta, em nossa página na internet: vê-se que ela, escondida atrás de um carro, segura a pistola lança-pimenta e a câmera.

Via-se também bem claramente que vários policiais à paisana andavam pela rua, com câmeras, filmando rostos. Estamos solicitando, nos termos do Freedom of Information Act, que os filmes feitos por esses policiais não identificados como policiais nos sejam entregues, para que integrem o dossiê que está sendo preparado, com outras provas da ação ilegal da polícia em outras cidades dos EUA.

Preocupam-nos, de modo especial, as ações da Policial Jay Hollis, crachá de identificação #6896. Em vídeo filmado por manifestantes, essa policial aparece puxando uma pessoa de cima de uma mureta de mais de um metro de altura, e jogando-a ao chão. Questionada mais tarde por manifestantes, sobre por que atacara um manifestante, a policial Jay Hollis respondeu, dando de ombros: “Ele pediu para descer”. Em vários desses vídeos, pode-se ver que o senhor estava próximo da cena, observando-a.

A carta de Dallas segue com uma série de recomendações à polícia local e em vários outros momentos alerta para o fato de que os manifestantes estavam orientados a produzir informação que seria utilizada contra a repressão policial e contra a manipulação midiática. As ruas nas redes. As redes como parte das ruas. Nos movimentos de protesto 2.0 não se pensa em ruas sem rede. Ambas são a mesmíssima coisa para os militantes. E suas ações são pensadas como combinação da tomada de todos os espaços produzindo o máximo de informação que contribua para o sucesso da ação.

No 15-M da Espanha, que levou milhares de jovens a diferentes praças do país, em especial à do Sol, em Madri, e a da Cataluña, em Barcelona, o papel do ativismo jornalístico também não foi menor. Os indignados espanhóis teriam se inspirado no livro Indignez Vous, de Stéphane Hessel, que vendeu alguns milhares de exemplares em toda a Europa. O livro, sem tradução no Brasil, é um manifesto à indignação contra o sistema e se tornou um clássico muito em decorrência da história do seu autor. Hessel, 92 anos, escapou duas vezes dos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial, contribuiu para a redação da Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948, foi embaixador de França e hoje é um mundialista-ecologista. O livro se tornou um best-seller por conta da divulgação que teve nos veículos independentes e nas redes.

Os protestos se iniciaram no dia 15 de Maio (por isso 15-M) e como a repressão foi grande, os manifestantes criaram no dia 18 um link para transmissão ao vivo via Ustream com o objetivo de constranger a ação policial. Foi daí em diante que a solidariedade ao movimento se espalhou pelo mundo e os veículos de comunicação tradicional passaram a tratar do assunto com a dimensão aproximada do que ele merecia. Claro que sempre tratando os manifestantes como um bando de rebeldes sem causa. Aliás, neste sentido da crítica, direita e esquerda tradicional se confundem. Ambos desqualificam os movimentos 2.0 pelos mesmos caminhos, a suposta ausência de propostas.

A questão que se coloca é que tanto o fazer político quanto o jornalístico estão em plena transformação nesses primeiros anos de uso da internet. A internet e as suas novas possibilidades de interação, em geral mais horizontais, levam o novo cidadão que atua nas redes a não aceitar a centralidade e a verticalidade como algo natural. Essa nova cultura coloca em xeque o sistema de organização dos partidos políticos e a dinâmica dos veículos de comunicação tradicionais.

Não são os novos movimentos e suas formas que não apresentam saídas. São as formas tradicionais de fazer política e de querer organizar a agenda pela comunicação que estão em crise. Os movimentos políticos de 2011 não aconteceram para apresentar respostas a essas questões. Mas para gritar que não se modificará as estruturas de poder da sociedade fazendo o jogo a partir da lógica tradicional. Mas reinventando o jogo. Que se joga não apenas na disputa dos espaços tradicionais da política partidária e nem só nos veículos comerciais de comunicação.

O ano de 2011 não foi um ano comum. E é muito provável que venha a ser o ano da saída da adolescência de um movimento que mistura política, redes, circulação de informação e outras formas de ativismo, que se iniciou lá em 1994 como zapatistas e foi testando formas até descobrir que suas formas são múltiplas e disformes.

Fonte: Revista Fórum

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