As ideias mesmo que fora de seus lugares sempre ocupam um canto que as valha, se espreguiçam e se sentem em casa.
Por Caio Sarack.
Difícil retirar da própria arte, hoje, seu caráter elitista e excludente. Se a ida ao MASP, MAM, museus municipais, qualquer evento de cultura dita universal (em São Paulo, Rio, nos centros urbanos a cultura regional ou de periferia assumem outras cores) tem um caráter elitista já por princípio: o próprio conhecer, por exemplo, Modigliani, Malevich ou até mesmo saber do centenário de nascimento do escritor argelino Albert Camus traz em seu bojo uma ilustração e um som incômodo para a “humildade” à brasileira. Sintoma não só da cultura.
O mesmo elitismo, e esta tem sido minha preocupação quando me ponho a escrever sobre e daqui da Europa, parece sondar qualquer descrição da viagem. Andar pela margem do Sena, visitar o Louvre, ver as catacumbas de Paris, quando ditas (ou lidas) em território brasileiro as palavras vão se sujando de um pedantismo automático. Ainda mais quando se assume um lado (fui ser “gauche na vida”), o elitismo involuntário amarga ainda mais a boca.
Este sentimento fica avulso em Paris. A cidade luz nunca esquece de si mesma (temos espaço pra mais um pedantismo), disse Borges. A história marcou cada um de seus concretos. A cada passo que me afasto de Notre Dame me aproximo do túmulo de Napoleão Bonaparte; se fujo da tragédia do Arco do Triunfo, já logo caio na farsa das grandes avenidas de Napoleão III. Paris não deixa ninguém esquecer de que é Paris.
As ideias mesmo que fora de seus lugares sempre ocupam um canto que as valha, se espreguiçam e se sentem em casa. A minha identidade de brasileiro vai se confundindo, as ligações existem. Os desencontros, tão constantes quanto. Não se passa imune por um bate pernas em Paris, vê-se mensagens em tudo que é canto: “liberté, egualité, fraternité”, república, rue Descartes, boulevard Voltaire. O pensamento tem carne e osso.
Ainda não me desterrei por aqui, vejo Paris com os olhos brasileiros, brasilisantes. Fazer o caminho pela avenida que acompanha o Sena (“Quai”, são as avenidas que margeiam o rio) e notar que a brasilidade é mais um sotaque, uma particularidade do que uma identidade do pensamento. Afinal, Dom João VI trouxe consigo tudo que sua realeza precisaria para se instalar – mesmo cá (ou melhor, aí) em terras tão distantes – o centro europeu do capitalismo tentou cruzar o Atlântico e trouxe consigo muito mais que só o medo tinha de Napoleão.
Ser brasileiro aqui é ser amargamente privilegiado, mesmo que não se seja; é trazer consigo a farsa que é a “liberdade de ir e vir” e a “autonomia”. O contato com as mais brilhantes ideias e mais lindos quadros parecem absurdo, pesam duas vezes na experiência de um estrangeiro da periferia: se vemos “As Botas” de Van Gogh, primeiro vemos o traço pesado, a pincelada que se tornará característica; depois notamos onde estamos: o museu e os sinais de luz em três ou quatro línguas, os saguões forrados.
Van Gogh não se sujeita, mas o espectador se entretem: a arte é para depois do trabalho. Arte só aos fins de semana.
Fonte: Carta Maior