Existe vida entre a neve artificial e a babá negra vestida de mucama

Por Marcos Casara.

marcos casaraGraças ao bom deus, não temos segregação racial no Brasil.

O fato de a única pessoa negra que você vê nessa foto ser uma babá, trajada de mucama, é mera coincidência.  Não era para estar ali. Ela saltou na minha frente bem na hora que apertei o botão da câmera. Foi tudo muito rápido, com toda aquela gente em volta.

Ela vinha pelos corredores com seu carrinho, driblando renas e flocos de neve e bichinhos e pacotinhos e crianças e papais-noéis. Foi parar no meio da foto.

Aquele cenário finlandês me fascinou desde que entrei no shopping center. Muita neve. Neve no chão, nas árvores, nos ombros vermelhos do papai-noel. Mamães excitadas pela presença do bom velhinho registravam tudo. Cada instante de seus pequenos pimpolhos aventureiros era registrado, em meio as nevascas e ventanias imaginárias que fustigavam o piso central e compeliam todos a sacarem seusiPhones, fotografar cada detalhe.

No começo, meu interesse não era pela babá, negra e vestida de mucama. Meu interesse era pela paisagem finlandesa com muita neve e renas que se mexem de verdade.

Tampouco meu interesse era pelo que está entre a babá e a paisagem finlandesa. Sim, existe vida ali, entre a babá e os flocos de neve. Observe que entre a babá negra e a neve tem um pessoal na fila do papai-noel.

Todos brancos. Todos.

De cada 10 brasileiros, mais da metade é formada por negros, pardos ou mulatos.

Eles não estão na foto.

Estão em outro lugar. É preciso pegar um ônibus e um trem para encontrá-los.

Graças ao bom deus, não temos segregação racial no Brasil. Obrigado, senhor. Mas, veja bem, entenda. Não é por isso que você vai querer entrar em um shopping de luxo, confere?

Faça um teste. Peça para dois amigos negros entrarem, bem vestidos, em um shopping de luxo em São Paulo. Acompanhe ao longe. É uma questão de segundos para serem monitorados por seguranças falando baixinho em seus comunicadores.

Seguranças negros, mas a serviço. Negro a serviço, pode.

Não faça o teste se você for negro. Vão te filmar e vão achar que você é comparsa dos outros dois. Muita calma nessa hora.

Obrigado, senhor, por nos deixar viver em um país livre, sem discriminação de raça ou de gênero. Sim, gênero. Nos ensinam Charles Gavin e Sérgio Britto: as mulheres são os pretos do mundo.

Quando me dei conta, a babá vestida de mucama já tinha dobrado o corredor, desaparecido sob as brumas nórdicas deixadas pelo tropel de renas. Não pude perguntar o que ela achava de toda essa alegria, esses espírito festivo que tanto nos contagia e nos faz feliz. Eu amo o natal. Eu amo a fome de consumo, a pressa, toda essa dedicação religiosa ao templo de falso mármore e falsa neve, mas com renas que se mexem de verdade.

Depois eu pego um trem e vou atrás da babá e suas vestes de mucama.

Ela e seu pessoal também devem estar curtindo adoidado o clima natalino. Eu quero perguntar a ela cadê os outros, por que não foram ao shopping?

Será que não acreditam em papai-noel?

—-

A história da neve fica pra depois. O ponto central da narrativa é o seguinte: você vai saber porque um pátio de shopping center coberto de neve artificial é muito mais real do que a vida aqui do lado de fora. Não perca.

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*Uns iguais aos outros (Charles Gavin, Sérgio Britto)

Os homens são todos iguais

Os homens são todos iguais

Ingleses, indianos

Africanos contra africanos

Aos humildes o reino dos céus

Ao povo alemão e ao de Israel

Putas, ladrões e aidéticos

Católicos e evangélicos

Todos os homens são iguais

Brancos, pretos e orientais

Todos são filhos de Deus

Os pretos são os judeus

Cristãos e protestantes

Kaiowas contra xavantes

Árabes, turcos e iraquianos

São iguais os seres humanos

São uns iguais aos outros, são uns iguais aos outros

São uns iguais aos outros, são uns iguais aos outros

Americanos contra latinos

Já nascem mortos os nordestinos

Os retirantes e os jagunços

O sertão é do tamanho do mundo

Dessa vida nada se leva

Nesse mundo se ajoelha e se reza

Não importa que língua se fala

Aquilo que une é o que separa

Não julgue pra não ser julgado

Os pobres são pobres-coitados

São todos iguais no fundo, no fundo

As mulheres são os pretos do mundo

Tanto faz a cor que se herda

Seja feita a tua vontade no céu como na terra

Gays, lésbicas-homosexuais

Todos os homens são iguais

São uns iguais aos outros, são uns iguais aos outros

São uns iguais aos outros, são uns iguais aos outros

Os homens são todos iguais

Os homens são todos iguais

Os retirantes e os jagunços

O sertão é do tamanho do mundo

Aos humildes o reino dos céus

Ao povo alemão e ao de Israel

Não importa que língua se fala

Aquilo que une é o que separa

Todos os homens são iguais

Brancos, pretos e orientais

São todos iguais no fundo, no fundo

As mulheres são os pretos do mundo

Cristão e protestantes

Kaiowas contra xavantes

Gays, lésbicas-homosexuais

Todos os homens são iguais

São uns iguais aos outros, são uns iguais aos outros

São uns iguais aos outros, são uns iguais aos outros

Fonte: Marques Casara.

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