Como já previ em postado anterior sobre os eventos na Ucrânia, políticos europeus e partidos da oposição ucraniana entraram em modo de frenesi para tentar mais uma “revolução colorida” em Kiev. Os euroburocratas, normalmente lentos, resolveram que é hora de castigar a Rússia com declarações iradas sobre uma “inaceitável interferência russa”, ao mesmo tempo em que seus próprios diplomatas sobem ao palco para estimular “manifestações” (ilegais) em Kiev.
Quanto à oposição, usou seus formidáveis recursos para arregimentar gente de toda a Ucrânia, estados do Báltico e da Polônia, trazidos para Kiev, para um comício monstro. Para garantir que haveria “massa”, abriram o comício com um show de rock gratuito. Para completar, os partidos da oposição declararam que estão criando “um quartel-general da resistência”, cuja primeira tarefa será organizar uma greve geral nacional na Ucrânia.
Muito impressionante.
E quanto ao governo “pró-Rússia” de Yanukovich?
Como também previ, ziguezagueia. Depois do surpreendente “zig” da semana passada, agora começa o “zag”. Tudo que Yanukovich & Co. fizeram foi mandar o Primeiro-Ministro Azarov explicar a mais recente mudança de ideia do Presidente Yanukovich. Foi num programa de TV apresentado pelo conhecido russófobo judeu “Savik Shuster” (seu nome verdadeiro é Shevelis Shusteris – trabalhou para a Radio Free Europe/Radio Liberty, da CIA; depois para veículos russos “democráticos”, antes de começar a trabalhar para a TV “ucraniana” depois da “Revolução Laranja” em Kiev. É mesmo “cosmopolita”: tem cidadanias italiana e canadense e, provavelmente, também israelense). Mas ninguém ouviu coisa alguma do que o primeiro-ministro disse; a cada número da economia que Azarov enunciava na defesa de seu argumento, os nacionalistas ucranianos respondiam com slogans emocionados, promessas de um futuro radiante e a retórica usual de ódio à Rússia.
O próprio presidente Yanukovich deu pistas de que o que aconteceu não passou de “adiamento temporário”, e que a Ucrânia talvez assine o acordo [de comunidade econômica com a União Europeia], só que “um pouco adiante”, talvez na primavera.
Para arrematar, o governo mandou suas tropas de choque esvaziar a Praça Maidan em Kiev às 4h da madrugada, o que foi feito com o nível usual de violência desbragada (dos dois lados). Vídeo abaixo. Azarov então denunciou sua própria tropa de choque e anunciou a criação de uma comissão especial de inquérito para investigar a violência e descobrir os responsáveis (não se sabe que outros responsáveis podem ser algum dia descobertos, além das tropas de choque do próprio Azarov).
Se querem saber minha opinião: absolutamente patético.
Quanto aos chamados “russos” de Donetsk, organizaram comício anti-União Europeia e pró-Yanukovich, no qual exibiram gigantescas bandeiras amarelo-e-azul da Ucrânia, ao som de “Ode à Alegria” da 9ª Sinfonia de Beethoven – com certeza sem saber que é o hino oficial da União Europeia.
Comparemos os dois lados envolvidos nessa disputa:
Os euroburocratas e os nacionalistas ucranianos
Os euroburocratas e os nacionalistas ucranianos são doidos, completa, absolutamente doidos. São como alguém que, de repente, muda de ideia, renega o que prometera e num gesto, sem mais nem menos, detém um processo no qual investiu um gigantesco capital político. Isso, exatamente, foi o que aconteceu.
Agora, os euroburocratas e os nacionalistas ucranianos estão todos no mesmo pé: os dois lados sentem-se extremamente fracos e os dois lados temem a Rússia e os dois lados estão falidos e os dois lados esperam que uma vitória política esconda o fracasso econômico e os dois lados odeiam a Rússia e os dois lados acham que é crucial negar à Rússia qualquer vantagem (real ou imaginária) que possa extrair de uma união com a Ucrânia.
É. Todos esses são sentimentos negativos, carregados de ódio, sentimentos de insatisfação e inadequação misturados com autoilusão sobre uma sempre esperada, mas para sempre inalcançável grandeza. Mas sentimentos negativos – sobretudo sentimentos nacionalistas – podem ser muito poderosos, como Hitler demonstrou com muita clareza ao mundo.
Os ucranianos do leste, pressupostos “pró-Rússia”
Estes, não têm visão alguma, não têm ideologia alguma, não têm qualquer objetivo futuro identificável. Só têm a oferecer uma mensagem a qual, em essência, “declara” que “não temos escolha senão entregar tudo aos russos ricos, em vez de entregar tudo aos europeus pobres”. Ou: “da União Europeia só nos vem conversa; a Rússia, pelo menos, oferece dinheiro”. É verdade. Mas absolutamente pequeno e pouco, para dizer o mínimo. Pior: esse ponto de vista reforça, pelo menos por implicação, as teses centrais dos euroburocratas e dos nacionalistas ucranianos: que se trata de rendição à Rússia e que os russos estão chantageando e interferindo.
Ora! Quem chantageia e interfere é, completamente, a União Europeia. É o que se vê, perfeitamente claro, na demanda para libertar Tymoshenko (quando, na Europa, Berlusconi é acusado por exatamente o mesmo crime – e basta isso, para ver o duplifalar).
E quanto à Rússia, nisso tudo?
Começo a temer que isso tudo venha a explodir numa crise real e muito perigosa para a Rússia. Primeiro, assumo que os euroburocratas e os nacionalistas ucranianos podem, sim, prevalecer; e que o presidente Yanukovich ou ficará no “zag” e reverterá a decisão anterior, ou perderá poder. De um modo ou de outro, me parece, os nacionalistas ucranianos prevalecerão. Haverá festa e fogos de artifício em Kiev, tapinhas em mútuas costas arrogantes em Bruxelas, e, na sequência, abrir-se-ão as portas do inferno, para a Ucrânia. Por quê?
Bem… Simplesmente porque atar o Titanic ucraniano na popa do Titanic europeu não salvará ninguém. A União Europeia está naufragando, como a Ucrânia. Nem a União Europeia nem a Ucrânia têm qualquer ideia sobre o que fazer para deter o desastre; e os dois lados estão completamente dedicados a esconder a quebradeira, sob avalanches de retórica cada vez mais estridente, de “conteúdo político” cada dia mais sórdido. Desnecessário dizer que nem promessas ocas nem slogans nacionalistas enchem a barriga dos famintos, e que a economia ucraniana está moribunda e logo entrará em colapso. Quando acontecer, a prioridade da Rússia terá de mudar: de sustentar a Ucrânia, para proteger-se contra o caos ucraniano, ali, ao longo de 2.300 km de fronteira quase completamente desprotegida. Qual o risco para a Rússia?
Os riscos reais para a Rússia
Ser arrastada para o caos e a violência inevitáveis que se espalharão por toda a Ucrânia (inclusive na Península da Crimeia); deter ou, no mínimo administrar com segurança um provável fluxo de refugiados que procurarão segurança física e econômica na Rússia; e proteger a economia russa contra as consequências do colapso da economia ucraniana. A Rússia terá de fazer tudo isso, ao mesmo tempo em que se mantém distanciada da crise que crescerá dentro da Ucrânia – porque é absolutamente garantido que os euroburocratas e os ucranianos nacionalistas culparão a Rússia por todas as suas desgraças.
Nessa situação, o melhor que a Rússia pode fazer é deixar que os ucranianos mergulhem em seu inferno nacional, e esperar que um ou outro lado prevaleça. Isso, antes de tentar enviar alguns “olheiros”, fora dos holofotes políticos, para verificar se alguém do lado de lá da fronteira começa a recuperar a razão e está em posição (e tem competência) para começar a reconstruir a Ucrânia e sua inevitável parceria com a Rússia e o restante da União Eurasiana. Enquanto isso não for possível, a Rússia deve manter-se o mais distante possível dessa “revolução”.
Sarajevo no [rio] Dniepr
Nesse momento, todos os sinais indicam que a Ucrânia descerá pela “estrada bósnia” e que as coisas ficarão realmente muito feias. A mistura explosiva que está fermentando hoje na Ucrânia é exatamente a mesma que explodiu tão terrivelmente na Bósnia: nacionalistas locais apoiados por imperialistas externos absolutamente decididos a ignorar qualquer tipo de bom-senso, que se opõem a qualquer solução negociada – decididos a alcançar a qualquer preço seus objetivos ideológicos.
Gente mais racional e sensível talvez ache esse meu cenário excessivamente pessimista. Os mais céticos, com certeza, nunca ouviram a seguinte piada, muito conhecida:
Um polonês encontra uma lâmpada mágica e, para limpá-la, dá-lhe uma esfregadela. E salta um gênio, de dentro da lâmpada: “Sou o gênio da lâmpada e posso conceder-lhe três desejos”. “Ótimo”, diz o polonês. “Quero que o Exército Chinês invada a Polônia”. Desejo estranhíssimo, pensa o gênio. Mas, ok, concede o desejo ao polonês e o Exército Chinês vem da China, invade a Polônia, e retorna à China. “Agora, o segundo desejo. Por que você não deseja algo mais… construtivo?”, diz o gênio. “Nada disso”, responde o polonês. “Quero que o Exército Chinês invada outra vez a Polônia”. E lá vem o Exército Chinês, lá da China, torna a invadir a Polônia e retorna à China. “Escute aqui”, diz o gênio. “Você tem mais um desejo. Posso fazer a Polônia o lugar mais rico e belo do mundo.” “Não”, diz o polonês. “Se você não se incomoda, eu quero que o Exército Chinês invada a Polônia pela terceira vez.” E assim foi. O Exército Chinês veio, invadiu, acabou de destruir o que restava da Polônia, e voltou para a China mais uma vez. “Não entendo!” Disse o gênio. “Por que você pediu que o Exército Chinês invadisse três vezes a Polônia?” “Ora essa”, respondeu o polonês. “Porque, assim, eles passaram SEIS VEZES por cima da Rússia”.
Esse é o tipo de “humor” que pode brotar de um sentimento de inferioridade profundamente arraigado, combinado a um nacionalismo estridente compensatório. Falem com qualquer um que conheça um ucraniano nacionalista e verão: os nacionalistas ucranianos fazem os nacionalistas poloneses parecer sóbrios e ponderados.
Desnecessário dizer que quando a Ucrânia explodir, os euroburocratas farão ar de quem nada tem a ver com aquilo e trancarão firmemente as fronteiras respectivas. E os líderes dos partidos nacionalistas ucranianos fugirão rapidamente para o ocidente, onde logo arranjarão bons empregos em universidades, think-tanks e ONGs. E o povo ucraniano será deixado lá, matando-se uns os outros, num oceano de lágrimas de crocodilo derramadas pela chamada “comunidade internacional”?
Lasciate ogne speranza, voi ch’entrate? [1]
Espero sinceramente estar errado, e que surja algum indivíduo ou movimento, do atual caos, para impedir que a Ucrânia desabe para um “cenário bósnio”. Mas, infelizmente, não vejo sinal algum de que possa acontecer no curto prazo. Os políticos ucranianos fazem triste figura. Os políticos da União Europeia não fazem melhor. Nos melhores casos, são tediosos, sem imaginação e sem competências. Na maioria, são mentirosos patológicos, politicamente prostituídos e tolos delirantes, arrogantes demais e imbecis demais a ponto de não verem o que salta aos olhos de qualquer analista, nem que apareça diante deles em letras garrafais.
Fiquem sabendo: por treinamento e por personalidade, sou pessimista (alguém algum dia viu analista militar que fosse otimista?). Por exemplo: desde meu primeiro postado nesse blog, prevejo sempre que EUA-Israel atacarão o Irã, o que ainda não aconteceu (pior: continuo a prever que, mais dia menos dia, os israelenses e seu sayanim [heb. “auxiliar, servente”] neoconservador provocarão um ataque norte-americano ao Irã; se for preciso, haverá um primeiro ataque, que será atribuído a outros). Várias vezes, portanto, estive errado, muito errado. E espero, de coração, estar errado também agora. Mas, infelizmente, não vejo fatos nem argumentos que sugiram, mesmo indiretamente, qualquer outro melhor cenário para o futuro da Ucrânia. Alguém vê?