Reedição do Fradim mostra o artista a zombar do empobrecimento ditatorial. Hoje, Henfil agiria contra os abusos policiais, acredita seu filho Ivan.
Por Rosane Pavam.
Antes de se tornar Henfil, o menino era alvo de gozação no “complexo hospitalar-favelado” de Santa Efigênia por ser hemofílico. O sadismo explícito e inocente contra a má saúde temperou sua infância, vivida nos anos 1940 naquela periferia de Belo Horizonte. Sabedor de que o riso poderia ser mau e o humor, um remédio, Henrique de Souza Filho deu o troco da verve a cada xingamento. Mais tarde, ele, um dos mais importantes artistas brasileiros, xingaria primeiro sem perguntar depois, ciente da urgência de viver e esquecer. Viver: usar a doença a seu favor, uma vez que ninguém revidaria o soco bem dado por um hemofílico, nem o castigaria se não fizesse lição. Esquecer: o catolicismo da mãe. Jamais falar palavrão, sob pena da malagueta na língua, jamais acompanhar com as mãos certos pensamentos, sob risco de água fria, muitas foram as ideias de dona Maria para disciplinar o menino aos olhos de seu deus. Eis uma das razões por que, homem feito, Henfil caberia entre os fortes.
“O Baixinho sou eu”, dizia ele, parafraseando um Flaubert instado a entregar a identidade de Madame Bovary, quando lhe perguntavam se um dos “fradins” representaria ele próprio. Baixim só era diminutivo no apelido mineiro. Criado em paralelo ao ingênuo frade Cumprido, seu contraponto, para a breve revista Alterosa, em 1964, ele virava os raciocínios do avesso, à moda de seu criador. Funcionava como um personagem expressivo do cinema mudo, engraçado por exagerar, aflitivo e torpe ao comentar os fatos, além de ser anarquicamente inspirado na ira dos patos de Carl Barks. Não se parecia, como o Amigo da Onça de Péricles, um sacana cuja face desautorizava um perfil. Era a própria Onça, algo que o leitor poderá comprovar ao ver republicada depois de três décadas, em coedição pelo Instituto Henfil e pela ONG Henfil-Educação e Sustentabilidade, os 31 volumes das coletâneas das tiras do Fradim anteriormente lançadas pela Codecri, a editora do Pasquim.
Mau, decidido a extirpar o sentimentalismo que atrasava as mentes e a cultura, e inspirado nos dominicanos que Henfil admirou, Baixim engolia meleca do nariz, comia cocô, dizia-se comunista para estranhar a patuleia da polícia, declarava-se da TFP decidido a arrepiar os esquerdinhas, desfazia das crianças, ensinava os santos do Céu a fazer “top-top”, clássica onomatopeia para as situações perdidas, e jamais aceitava estar onde o colocavam. Brasileiro no último, exposto ao projeto perdido de nossa modernidade durante a cruel ditadura dos anos 1960, ele foi “morto” a certa altura por seu criador, irritado com o intelectual do Sul Maravilha que acusava o artista de repetir-se. E não é que, no Inferno, Baixim tornou obsoleto o próprio Satã, aquele que jurava jamais ter escondido em sua casa um preso político?
Diz a pesquisadora Maria da Conceição Francisca Pires, no livro Cultura e Política entre Fradins, Zeferinos, Graúnas e Orelanas (Editora Annablume), que, com Baixim e sua turma, Henfil fazia uma crítica política e de costumes ao cristianismo oficioso das elites. Por intermédio do grotesco e do fantástico, aquele trabalho editado em periódicos tão diversos como O Dia, Jornal do Brasil, O Globo, Jornal dos Sports ou revista IstoÉ, colocava em ridículo as deidades políticas e religiosas, substituindo-as pela dúvida. “Não se tratava apenas da crítica à devoção”, escreve a pesquisadora sobre Fradim, “mas especificamente da crítica à devoção ao poder.”
A revolução de seu humor jamais foi customizada, embora não lhe faltassem ofertas nessa direção. É que Henfil não via sentido em ser ao mesmo tempo um autor popular e comercial. O que poucos talvez desconfiassem em relação ao artista das causas certas é que ele talvez nada tivesse sido sem o Pato Donald. Fora o personagem neurótico, de traço equivalente ao de sua própria inquietude, que o levara a desenhar, como assegura a CartaCapital o filho Ivan Cosenza de Souza, 43 anos. Um almanaque com as aventuras do personagem-símbolo é um dos presentes cruciais que o filho recebeu do pai. Ele lhe mostrara Mafalda (que o próprio autor, Quino, só desejava ver traduzida por Henfil) e soubera de seu apreço pela Mônica de Mauricio de Sousa.
Foram poucos anos de convivência, uma vez que Henfil se separou de sua mãe quando Ivan tinha apenas 2 anos. A criança sabia do paradeiro do pai em diversas cidades, no Brasil e nos Estados Unidos, essencialmente por suas cartas afetivas, nas quais se via transformado no personagem Sapo Ivan. Em 1988, aos 18, o jovem jogava sinuca em Maricá quando soube pelo rádio da morte do pai, que sucumbira à Aids adquirida em transfusão sanguínea um mês antes de completar 44 anos.
Sem a relação de camaradas adultos que gostaria de ter usufruído com o artista, Ivan mantém dele poucas e boas lembranças, como aquela de Henfil a lhe presentear com cada nova história feita. Orelana, o bode intelectual que comia os livros para conhecer seu conteúdo, o cangaceiro do bem Zeferino, a inquieta Graúna, a Onça, Baixim e Cumprido, entre tantos, eram, como Henfil lhe ensinara, seus “irmãos”. “Eu recontava a meu pai suas próprias piadas, sem cair em mim que era ele o autor.” Ivan, que não cursou faculdade e deixou de desenhar por força da injusta comparação com o artista, a si mesmo imposta, não abandona sua memória. É o presidente do Instituto Henfil, ainda sem sede, a esperar um apoio do Ministério da Cultura, ele que no dia 6 último condecorou in memoriam o artista com a medalha da Ordem do Mérito Cultural Grã-Cruz.
Em sua casa no subúrbio carioca de Lins de Vasconcelos, Ivan recolhe toda história que lhe chegue do pai, parta ela do pesquisador, do conhecido longínquo ou de um dos “tios do Pasquim”, como Ziraldo uma vez lhe ensinou serem pessoas como ele, Jaguar ou Millôr. E é de lá que ele comandará o novo projeto, destinado à Copa de 2014, de reunir em exposição os desenhos do artista sobre o futebol e seus bastidores. Foi Henfil quem deu ao Flamengo o símbolo do Urubu, ao Botafogo, o do Cri-Cri, ao Vasco, o do Bacalhau, ao Fluminense, o do Pó-de-Arroz, sem que as torcidas respectivas se chateassem em assumir como seus os tipos depreciativos. Ele amou o esporte, mas talvez o tenha temido mais do que a censura ditatorial. Segundo Ivan, Henfil desistiu de tematizar o futebol por não suportar o sofrimento que isso lhe causava. Temia que, não intencionalmente, seu humor acirrasse as rivalidades entre as torcidas.
“Sempre que imagino meu pai no mundo de hoje, vejo-o como um dos primeiros blogueiros possíveis. Isto porque ele tinha necessidade extrema de comunicação, exauria-se em responder de próprio punho toda e qualquer carta de leitor”, conjectura Ivan. “Henfil queria interagir, mas também influenciar. Armou a Campanha das Diretas, a da Anistia, encabeçou e puxou a massa para onde ele imaginava ser devido. A polícia comete os absurdos de hoje contra os manifestantes de rua e ninguém faz nada? O Henfil mobilizaria todo mundo contra isso, porque tinha o talento.” Henfil eterno, de seu tempo para os nossos.
Fonte: Carta Capital