“Esta história não tem fim”: Vila Dique e as memórias de um reassentamento urbano

Por Ramiro Furquim/Sul21“A história da Vila Dique é comum a muitas comunidades brasileiras, nascendo de uma ocupação e crescendo de dentro – lutando para não ficar para sempre às margens de uma cidade, de um aeroporto, de uma sociedade. Essas lutas e conquistas estão preservadas nas memórias dos que um dia chegaram a Porto Alegre em busca de melhores condições de vida. Nada lhes era dado, a não ser com muito esforço. Assim, se formou a Dique – a Dique das lutas, a Dique das mulheres, do Clube de Mães, do Galpão e do Galpãozinho – a Dique das memórias de cada morador da antiga vila” (Memórias da Vila Dique, 2013)

Débora Fogliatto

Ouvir as memórias dos moradores de uma das comunidades mais antigas de Porto Alegre e, possivelmente, o reassentamento mais longo da história da cidade. Essa é a proposta do projeto Memórias da Vila Dique, realizado por estudantes da UFRGS, a partir da Pró-Reitoria de Extensão, em parceria com o Grupo Hospitalar Conceição.

A iniciativa culminou na publicação do livro Da Vila Dique ao Porto Novo, que conta com dez artigos de acadêmicos envolvidos no projeto. Junto com o livro, vem o álbum: um conjunto de 60 páginas que resume as três rodas de memória realizadas pelo grupo com os moradores da Dique, e conta com fotos tiradas por eles. Nesta terça-feira (5), os autores – tanto acadêmicos quanto membros da comunidade – realizaram a roda de conversa “Memórias da Vila Dique”, parte da programação da 59ª Feira do Livro de Porto Alegre. Em formato parecido com os das rodas de memória, os participantes relataram as experiências que levaram à publicação.

Da Vila Dique ao Porto Novo é dividido em duas partes. A primeira, “O que foi… É…”, conta com textos de Renata Costa, Carmen Gil, Naiara de Assunção e Rafael do Canto, que apresentam os cenários do projeto e explicam os processos de memória dos moradores, “que tecem o presente-passado da Vila Dique/ Porto Novo”. A segunda metade,”O que foi… ficou…”, é composta por Lourenço Teixeira, Débora Wobeto e Maria Amélia Medeiros Mano. Eles relatam as histórias da Vila Dique e as vivências dos moradores.

“Gente, a gente viveu cada história linda ali naquele Dique, mas viveu tanta amargura, tanta tristeza também, que hoje, eu acredito que do jeito que eu me sinto hoje, valeu a pena tudo isso, valeu a pena todo esse sofrimento, valeu a pena ter desgastado essas mulheres que lutaram junto comigo, que hoje elas também estão aqui, hoje elas também têm as famílias delas aqui” (Roda de Memória III, 2012)

A Vila Dique nasceu nas margens do aeroporto Salgado Filho, nos anos 1950, e cresceu nas décadas de 1980 e 90. Em 2009, devido às obras de ampliação do aeroporto, necessárias para a Copa do Mundo, começou o processo de remoção das famílias. A maioria dos moradores foi transferida para o Conjunto Habitacional Porto Novo, na Avenida Bernardino da Silva Amorim, bairro Rubem Berta.

A história de como os pesquisadores se envolveram com a Dique começa em duas frentes paralelas, no final do ano de 2010. A mestranda em História Renata Soares Costa conheceu a professora Carmen Gil, da Faculdade de Educação da UFRGS, na disciplina de Estágio de Docência em História III – Educação Patrimonial. Ao mesmo tempo, a médica Maria Amélia Medeiros Mano e a moradora da Dique Almerinda Argenta Gambin, agente de saúde comunitária, trabalhavam juntas e pensavam em escrever a história da comunidade, devido à “inquietação dos moradores após a segunda remoção”, segundo Amélia.

O elo entre as duas duplas era a amizade de Amélia e Carmen. A professora entrou em contato com a médica comunitária e Renata passou a realizar seu estágio na Dique, analisando as relações patrimoniais envolvidas no processo de remoção. Em 2011, outros estudantes se juntaram ao grupo, e surgiram as rodas de memórias. Foram três momentos, dois em 2011 e um em 2012, em que moradores se reuniram com os acadêmicos e conversaram, contaram histórias, tiraram fotos. As atividades eram gravadas, transcritas e depois analisadas pelos estudantes, que as transformaram nos artigos publicados nos livros. “Eu e a Carmen conversamos, discutimos a ideia, e saiu. Foi despretensioso, mas extremamente valioso”, considera Amélia.

Renata Costa, a primeira bolsista a se envolver com o projeto, atribui o sucesso da iniciativa aos próprios moradores. “Se não fosse a comunidade querendo colocar suas angústias e expectativas, o projeto não existira”, afirmou, durante a roda de conversa. Lourenço Teixeira, estudante de História na UFRGS, explicou que se tratou de uma iniciativa de extensão de cunho popular. “A universidade é historicamente afastada da comunidade, e nesse projeto pudemos aprender, estabelecer relações”, destacou.

Ele também ressaltou que, apesar de seus nomes estarem como autores, o livro não é mérito apenas dos bolsistas e acadêmicos: “Esse livro é a história deles que estamos ajudando a contar”. “Há histórias que só existem quando contadas, mas também só existem quando ouvidas”, observou Renata, fazendo referência ao título de seu artigo no livro e à invisibilidade histórica de moradores de periferia.

 “Então, nós dizíamos, enquanto a vila continua, nossas crianças precisam de educação, saúde, os direitos que temos, como os de ser humano. E nós nunca desistimos disso e fomos em busca, e quando começou a negociação da vila sai, não sai, vai para onde não se sabia, nem como, uma ds coisas que a gente sempre esperava ter era garantir os direitos” (Roda de Memória I, 2011)

Débora Wobeto, estudante de Ciências Sociais que assina um dos artigos na segunda parte do livro, fez um resumo do histórico de remoções na cidade e no país. Ela menciona que, devido à Copa do Mundo e às Olimpíadas, o relatório “Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil” aponta que já há pelo menos 21 casos de remoção forçada de moradores em sete capitais estaduais. “Participando dessa pesquisa, parei para pensar que essas pessoas são tratadas como apenas números, índices. Percebemos a importância de perguntar quem são essas pessoas, o que elas acham a respeito disso”, expôs.

A moradora Almerinda Gambin, mais conhecida como Miranda, era mediadora das rodas de conversa e responsável por convidar os participantes. Foi ela quem falou, para a médica Maria Amélia, a frase que dá título a essa matéria. Amélia relata em seu artigo os dizeres de Miranda, moradora da Dique há 26 anos e Agente Comunitária de Saúde há 21, em uma das rodas de memória: “Lembro que, quando o caminhão chegou, logo veio uma mulher oferecendo ajuda sem nem eu mesma pedir (…). Cada conquista era uma vitória, e o brilho no olhar dizia tudo (…). Essa história não tem fim”.

A história da remoção da Vila Dique, prometida para acabar em 2010, ainda não teve fim. Famílias aguardam em meio aos escombros da antiga vila, atrás do aeroporto, por uma chance de terem uma vida melhor. Já no Porto Novo, moradores enfrentam desafios como problemas no recebimento de correspondências e violência urbana. Por sorte, o trabalho do Projeto Memórias da Vila Dique também não teve fim com a publicação do livro: este ano, o grupo realiza um documentário em vídeo sobre práticas culturais, territoriais e valores que circulam na comunidade. Para 2014, está previsto um trabalho sobre espaços de memória.

“A gente aqui tá falando a verdade. A nossa história, de cada um, pra vocês, é um pouco de cada um hoje. Mas é o bastante pra vocês poderem nos entender. Nós não tínhamos posto, nós vivíamos meio que escondidos ali, todos com a mesma história” (Roda de Memórias II, 2012)

FONTE: Sul 21

 

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